O economista Luiz Guilherme Schymura é um liberal que gosta
de discordar. À frente do Ibre, o mais antigo centro de estudos econômicos do
país, não deixa a instituição funcionar como igreja. Bem pensado: ninguém vai à
igreja no domingo para questionar o chefe da paróquia – quando a discórdia é
grande, o sujeito muda de igreja ou funda a sua ou, o mais difícil, tenta
reformá-la. Ademais, economia não é religião.
É enfadonho o debate que apenas repete o samba de uma nota
só do pensamento hegemônico. E é lamentável, neste país, a recusa da maioria ao
debate civilizado e civilizador. O que se observa aqui é a demolição
intelectual prévia do outro, com o apoio automático de alguns “sacerdotes”. Por
aqui, a desmoralização do interlocutor chama mais atenção do que o debate de
ideias. Mas, no “país do futuro”, demoniza-se o outro por ter vinculação
política com o partido A ou B ou por ter estudado em Harvard e não no MIT ou
nascido em Juazeiro (BA) e não em Petrolina (PE), por torcer para o Fluminense
e não para o Flamengo. Perde-se muito tempo na Ilha de Vera Cruz com pequenezas.
Além de promover o debate e a “disputa” de ideias, facilitar
a emergência do contraditório, tirar colegas da zona de conforto e de lembrar a
todos que economia não é ciência exata, Schymura põe suas próprias ideias para
brigar, sem abrir mão de sua sólida formação liberal. Nas análises, introduz
aspectos que a maioria de seus colegas releva por considerá-los imponderáveis.
Ora, o pensamento não chegaria a lugar algum se não houvesse ousadia, sonho,
utopia.
A ciência que mais sofre na tentativa de entender o Brasil é
justamente a destinada a esta missão: a antropologia. Porque o Brasil é um
imenso encontro de etnias marcado por uma infâmia chamada escravidão, com a
qual convivemos oficialmente durante quase quatro séculos e que, por isso, é a
nossa principal característica como sociedade, como advertiu Joaquim Nabuco há
mais de um século.
O Brasil, na verdade, ainda não existe. Nossa singularidade
– a diversidade étnica – é vista pelas elites colonizadas como um defeito de
origem. Ora, o conceito vago que temos de nação, o que julgamos ser parte de
alguma identidade, a nossa riqueza como povo novo, na acepção de Darcy Ribeiro,
deriva justamente desse encontro de imigrantes com os povos que estavam aqui
antes da sua chegada.
Onde entra a economia nessa conversa? Para Luiz Schymura,
não basta olhar para os números das finanças públicas e constatar que,
deficitários, impedem a economia de crescer mais rapidamente. Essa análise é
fácil. O difícil é largar a calculadora um minutinho e procurar entender por que
o governo – em todas as esferas – gasta mais do que arrecada e, o mais
importante, por que faltam recursos para o que é essencial (formar cidadãos) e
sobram para quem não precisa.
Quem disser que é por causa da corrupção, cuidado! A
corrupção é um mal em si, mas não faz cócegas no buraco das contas públicas,
que, em 2019, somou R$ 429 bilhões. Quem acha que uma explicação possível está
na maneira como o Orçamento é formulado está no caminho certo. O Orçamento
Geral da União (OGU) é um retrato do pacto que nos impede de ser uma nação.
O OGU mostra que a divisão dos recursos públicos privilegia
os mais ricos, as elites de todo tipo (não só as econômicas e financeiras, mas
também as sindicais, intelectuais e culturais), a burocracia estatal, as
grandes empresas e as multinacionais (a automobilística, que há 70 anos alega
ter prejuízo no Brasil, mas não sai daqui), enfim, os grupos de interesses
específicos. É provável que, ao ler o Orçamento, alguns leitores constatem
estar entre os beneficiários do regime que faz do nosso contrato social um dos
mais injustos do planeta.
Pior do que criar para si próprio privilégios é ser
beneficiário deles e calar-se. No primeiro caso, estão os “donos do poder”, os
que legislam em causa própria em todas as instâncias do poder; no segundo, os
cúmplices, que recebem riqueza imerecida do Estado. São tantos, mas tantos
exemplos de privilégios, que a tarefa de identificá-los é um exercício de
cidadania.
No debate, Schymura afirma: o brasileiro quer mais
democracia. E clama por isso desde a segunda metade do século XX. Os 50 milhões
de miseráveis atendidos pelo Bolsa Família; as dezenas de milhões da faixa
acima à dos beneficiários do Bolsa Família; as dezenas de milhões dos menos
pobres, mas com pouquíssimas chances de ascensão devido ao caráter concentrador
de renda das políticas públicas; a maioria quer mais democracia.
A história nos últimos 70 anos é reflexo desse desejo,
observa Schymura. Nesse período, o que vimos foi a disputa entre quem quer mais
ou menos democracia. Em 1984, fomos às ruas exigir a volta do direito de eleger
o presidente pelo voto direto. Em 1985, aprovamos o direito dos analfabetos
votarem. Em 1988, promulgamos a Constituição que instituiu direitos
civilizadores, como o acesso universal gratuito à saúde e à educação, o
pagamento de aposentadoria a trabalhadores do campo, mesmo sem terem
contribuído para o INSS, e o direito de os indigentes receberem um salário
mínimo mensal.
A Carta Magna, registre-se, acabou com a censura e definiu
qualquer forma de discriminação como crime, passível de punição (artigo 5º,
inciso XLI). Defensores da economia de mercado deveriam entender que a
democracia é o melhor regime para o florescimento do capitalismo. Milhões de
brasileiros foram às ruas em 2013 exigir serviços públicos de qualidade, prova
de que nossa democracia é manca num aspecto fundamental: oferecer oportunidades
iguais a todos.
Assegurada pela Constituição, a liberdade de expressão é um
pilar da democracia. A defesa da concorrência, por sua vez, é o alicerce da economia
de mercado. A insatisfação com juros e preços altos e a baixa qualidade dos
bens e serviços é crescente. Não há economia forte onde poucas empresas e
bancos dominam o mercado. A existência de monopólios e oligopólios estatais e
privados enfraquece a economia de mercado e, em última instância, a democracia,
e pouco se fala disso no mercado.
A profunda e perigosa divisão que a sociedade vive nesta
hora pode ser fruto da reação de setores da sociedade ao “mais democracia”. Não
se deve, porém, confundir “mais democracia” com assistencialismo e populismo,
práticas que sabotam a própria democracia. Para oferecer mais democracia, o
Estado terá que passar por profunda reforma. Terá que acabar com o sistema de
castas que distingue trabalhadores do setor privado de funcionários públicos;
combater o patrimonialismo que faz com que burocratas ajam como donos dos
serviços públicos; “estatizar” o Estado, impedindo que grupos empresariais
influenciem em decisões do governo.
Cristiano Romero é editor-executivo
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