Quando definir fica difícil, filiar nova safra a cepa velha
é um conforto. O prefixo “neo” salva a pátria. A Covid-19 trouxe novo membro à
família, que já tem neofascismo, neoliberalismo e que tais: o neokeynesianismo.
Subitamente, adversários do Estado entraram a defendê-lo.
Espera-se que coordene iniciativas, financie os gastos com a crise, dê o rumo.
Toada na contramão do que se dizia em versos e colunas de jornal até outro dia.
Na última década, a sociedade se mobilizou e muito para
reclamar do Estado —e não ficou na conversa. Ações diretas proliferaram, desde
coletivos culturais, sociais e políticos até o empreendedorismo cívico, no
gênero empresário social ou ambientalmente responsável, e o religioso, que
movimenta cultura e economia de autoajuda entre fiéis. Todos martelando a
autogestão da vida coletiva pelos cidadãos como superior à estatal.
Duas retóricas difundiram a ideia. Uma é a da
autossuficiência da ”sociedade civil”, que, se bem organizada, proveria tudo
—bens, serviços etc.— mais e melhor que o Estado. Outra é a do autointeresse.
Se o Estado parasse de meter o bedelho, empreendedores de “espírito animal”
—opostos dos funcionários parasitas— venceriam a luta pela vida, gerando uma
sociedade repleta de prósperos empresários.
Ambas deslegitimaram o Estado como gestor da vida coletiva,
demandando protagonismo para a ágil, eficaz e moralmente superior sociedade
civil. O Estado era o inimigo. Corrupto e ineficiente, desmereceria a
confiança, o poder e os impostos dos cidadãos. Melhor reduzi-lo ao mínimo
guedesiano.
Ante o vírus, a linha do autointeresse insistiu no
individualismo: isolar-se, munindo-se de grandes estoques, e deixar à livre
iniciativa quem mal mora, ou nem mora —e que não tem para comer hoje, que dirá
para estocar papel higiênico. Esses “loosers” deveriam é voltar logo ao
trabalho de servir o andar de cima.
Já a retórica da autossuficiência impulsiona ações
solidárias de empresas, associações civis e cidadãos de estratos médios e altos
e bem-educados. Precisaram, quase todos, da pandemia para descobrir a miséria
que grassa há dois séculos, com sua anuência ou vista grossa.
Das boas intenções nasceram muitas iniciativas meritórias,
mas estão em dissonância com seu discurso da inutilidade do Estado, pois se
coordenam ou se subordinam a políticas e órgãos estatais. Afinal quem está
respondendo centralmente à emergência médica é o Estado, aqui como mundo afora.
O fato de termos um presidente incapaz torna mais nítida a
distinção entre Estado e governo. O que está funcionando não é o governo
Bolsonaro, é o Estado brasileiro, sua burocracia e o conjunto de regras e
políticas públicas construídas desde a Constituição de 1988, que fizeram do
sistema de saúde brasileiro uma referência internacional.
É esse aparato que impostos, dos quais a retórica do
autointeresse reclama, financiam. A indignidade das condições de vida de tantos
brasileiros, recém-descoberta por ricos de bom coração, pode ser não apenas
mitigada, como extinta com políticas estatais —como já o demonstrou o Bolsa
Família. O Estado tem capacidade para isso. Claro, desde que o governo não
atrapalhe com o discurso neoliberal, uma insensatez nas circunstâncias, embora
combine com presidente insensato.
Para agir, no entanto, o Estado precisa de recursos. Hora de
grandes empresas que, ao longo de décadas, beneficiaram-se com políticas
protecionistas, baixos salários e concessões governamentais, devolverem à
administração estatal. Idem para fundações e igrejas, alimentadas por renúncia
fiscal.
Por mais louvável que seja, a mobilização cidadã corre o
risco de ser efêmera. Quando acabar a pandemia, a maioria dos cívicos
solidários vai retornar energias e moedas para seus projetos e bancos,
reconfortados com a contribuição episódica. Reinstalada a zona de conforto,
logo tornará a cantilena contra a corrupção e os impostos, enquanto os pobres
ficam lá no seu histórico cercado, o do esquecimento.
Hoje nenhum governo pode se dar ao luxo de ser liberal, com
“neo” ou sem ele. Se virá outro New Deal, novo Plano Marshall ou
neokeynesianismo, tanto faz. Num país de abissal desigualdade, políticas
públicas são cruciais —e não apenas nesta emergência.
O Estado deve operar como redistribuidor de recursos e
oportunidades. A parte bem-intencionada da sociedade do andar de cima ajudará
muito se, em vez de difundir a retórica antiestatista, se comprometer com esse
projeto.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e
pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.


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