Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na
epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar
da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não
assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da
peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela
serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como
enfrentar a nova peste: com o isolamento.
A insensatez está levando ao debate sobre a importância e
não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o
oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato
é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração
das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para
assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito
para viver e condições para buscar a felicidade.
O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não
pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro
depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com
isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos
que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.
O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há
séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social.
Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com
pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão
do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as
mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de
um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a
falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores.
“Nossos” governos.
O vírus está nos indicando que o obscurantismo do atual
presidente tem características de genocídio. Mas lembra que nas gestões
anteriores não fizemos o suficiente para impedir dezenas de milhares de mortos
por malária, dengue e sarampo. O vírus está nos apontando que não cuidamos do
analfabetismo porque não há um “letravírus” que contamine os que aprenderam a
ler, fazendo-os analfabetos outra vez. E lembrando que sem educação não daremos
emprego e renda aos que sobreviverem, despreparados profissionalmente. Para
viver não basta respirar.
O vírus nos revela ainda que ele foi trazido do exterior por
avião para os bairros ricos e nos pergunta se a epidemia seria enfrentada com o
mesmo rigor se tivesse chegado de ônibus, direto para os bairros pobres. Nesse
caso, talvez estivesse recebendo a pouca atenção dada ao aedes aegypti, que
transmite a dengue, ou do anopheles, que transmite a malária. Ele especula que
se o vírus da poliomielite não atingisse as pessoas indiscriminadamente, talvez
não tivéssemos dado ao mundo o exemplo das “gotinhas” que erradicaram essa
antiga epidemia.
O vírus anuncia que para salvar nossas vidas estamos em
quarentena, sobrevivendo à síndrome da abstinência ao vício do consumismo nos
shoppings e à falta de viagens. Ele nos ensina que podemos ver o mundo,
estudar, trabalhar mesmo sem sair de casa. E que a saúde de cada um depende da
saúde de todos, que a solidariedade com os outros é necessária para a
sobrevivência de cada um, que a saúde de cada um não será plenamente segura se
não cuidarmos da saúde pública.
O vírus está confirmando que além de levarmos a sério a
ciência médica precisamos respeitar a ciência econômica e sobretudo a velha
aritmética. Que neste momento devemos gastar o que for preciso para atender às
necessidade dos doentes, de trabalhadores desempregados e se empresários
falidos, mas que não devemos deixar a conta ser paga depois pelos pobres com a
carestia da inflação, nem pelos jovens que pagarão o aumento da dívida pública.
A solidariedade na doença precisa ocorrer na hora de pagar a conta
O vírus tem falado que além da quarentena, precisamos de uma
revolução no nosso comportamento e nas nossas prioridades. E nos grita que é
preciso mudar o velho padrão do progresso baseado na voracidade do consumo e na
ganância do lucro. Mas ele sussurra o medo de que, passada a epidemia,
voltaremos aos velhos costumes de antes: o desprezo ao saneamento, à educação
de base e à saúde pública, e a preferência pela ilusão inflacionária, obrigando
os pobres a pagarem a conta com a carestia.
Engenheiro, doutor em Economia, foi Reitor da Universidade
de Brasília, governador do Distrito Federal, ministro da Educação, foi Senador
da República (PPS-DF).


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