Naira Trindade, Natália Portinari e Juliana Dal Piva
O dia do “fico” de Luiz Henrique Mandetta começou com uma
videoconferência e terminou com lamentos de frustração. Era manhã da
quarta-feira 25, e o ministro fora desautorizado de forma constrangedora pelo
presidente da República na noite anterior, quando Jair Bolsonaro fez um
pronunciamento à nação negando a necessidade de isolamento social como forma de
conter o avanço do novo coronavírus. Ao contrariar publicamente a orientação
mais premente de seu ministro da Saúde, o presidente abriu uma vala de
distanciamento com Mandetta e colocou-o entre a cruz e a espada. Se ficasse no
governo, estaria sujeito a um chefe que o diminuía diariamente. Se saísse,
deixaria a pasta à mercê da ala mais radical do bolsonarismo, que enxerga na
paralisação provocada pela pandemia um obstáculo à reeleição do presidente em
2022. Naquela manhã, Mandetta participou da videoconferência em que Bolsonaro e
o governador de São Paulo, João Doria, se desentenderam. Depois da contenda,
foi chamado pelo presidente a permanecer na sala.
Ciente dos rumores de que Mandetta pediria o chapéu,
Bolsonaro fez elogios ao subordinado na presença de pelo menos dez ministros.
Disse querer que ele ficasse à frente da pasta e que continuasse “tocando seu
trabalho da maneira que achasse correto”, segundo relatos de aliados que
assistiram à cena. Mandetta consentiu com a cabeça, refletiu por alguns
segundos e disse ao presidente que havia decidido permanecer no cargo “pelo
Brasil”. “Eu poderia estar em Campo Grande com meu pai, para auxiliar no que
fosse possível, mas estou aqui, em Brasília, pelo Brasil, por acreditar que
posso ajudar”, disse, referindo-se a Hélio Mandetta, médico ortopedista como o
filho e que tem 89 anos. Em conversa, naquela manhã, com o amigo e governador
de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM-GO), Mandetta já havia sinalizado que não sairia,
a não ser que fosse demitido. “Lógico que pedi que ele não pedisse demissão. No
momento que estiver nessa luta, não pode deixar o barco, não pode sair como
quem fugiu”, disse Caiado.
O ministro ficou — pelo menos até o final da pandemia. Tem
dito a pessoas próximas que, quando tudo passar, não pensa em continuar no
ministério. Mas, naquela quarta-feira, na entrevista diária que concede à
imprensa para divulgar os números da doença, tentou distensionar a relação com
o presidente e, para isso, flexibilizou a recomendação de isolamento que
Bolsonaro tanto criticava. Depois de sua fala colocando em xeque o isolamento,
Mandetta foi bombardeado por ligações de aliados e técnicos da saúde. Ainda
muito ligado à classe médica de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, ele tem o
mesmo número de celular desde quando atendia em consultório. Também permanece
em grupos de WhatsApp dos quais fazia parte antes de virar ministro. Nesses
grupos, foi duramente criticado. Cobravam dele uma defesa mais enérgica das medidas
de isolamento social, conforme as diretrizes das principais autoridades
sanitárias do mundo. Sua mulher, Terezinha, médica em um hospital público de
Brasília, é também defensora da política de isolamento — e usou a hashtag
#ficaemcasa justamente ao publicar uma foto do casal. Em uma postagem, o
deputado federal Fábio Trad (PSD-MS), primo de Mandetta, fazia um apelo para
que o ministro não abandonasse suas convicções. “Fique com a ciência. Se isto
lhe custar o ministério, paciência. Sangue não vira água!”, escreveu o político
em sua conta no Twitter.
As cobranças surtiram efeito. Mandetta recuou da retórica
presidencial e, no sábado pela manhã, se dirigiu ao Palácio da Alvorada para
uma reunião com ministros e Bolsonaro. Lá, informou ao presidente que teria de
“endurecer” o discurso para que as pessoas permanecessem isoladas. Caso
contrário, todos assistiriam a milhares de mortes de infectados pela Covid-19.
Deu ainda uma reprimenda no presidente, em tom cordial, mas sério. Disse que,
quando Bolsonaro sai às ruas para se encontrar com o povo ou diz que o
brasileiro “pula no esgoto” e “não acontece nada”, está desautorizando seu
ministro da Saúde. E avisou: quando houvesse pronunciamentos desse tipo, ele
teria de divergir do próprio chefe. Foi o que fez na coletiva dada naquele
mesmo dia. No domingo, em sua casa, em Brasília, Mandetta acompanhou pela TV a
cena do presidente passeando por cidades-satélites, provocando aglomerações por
onde passava. Aos aliados que demonstraram incredulidade diante das ações de
Bolsonaro, Mandetta evitou elevar a temperatura do episódio e pediu paciência.
De lá para cá, Mandetta tem procurado fugir de conflito. Mas
não cessam em Brasília as especulações sobre quem poderá substituí-lo caso
Bolsonaro o demita. Um dos interessados na vaga é o almirante Antonio Barra
Torres, atual chefe da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ao
lado do presidente nas manifestações de 15 de março, Barra Torres é um militar
de perfil político que compartilha com Bolsonaro não só a visão conservadora,
mas também o interesse por motocicletas e tiros. Ambos se conheceram quando
Barra Torres era vice-diretor do Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de
Janeiro, local que recebeu recursos de emendas parlamentares de Bolsonaro,
quando deputado. O novo coronavírus os aproximou ainda mais. Outro na fila é o
ex-ministro Osmar Terra, também médico e crítico das medidas de isolamento. Na
reunião organizada no Palácio do Planalto, na quinta-feira 2, para tratar das
pesquisas sobre o uso da cloroquina nos tratamentos de pacientes com
coronavírus, para a qual Mandetta nem sequer fora convidado, era Terra quem
dava as explicações. Ele estava no comando da Secretaria da Saúde do Rio Grande
do Sul quando estourou a epidemia de H1N1 e tem feito comparações entre as duas
doenças — quase sempre diminuindo a importância do novo coronavírus.
Mais do que compromisso com o Brasil, aliados enxergam
cálculo político no vaivém retórico de Mandetta. De um ministro com pouco mais
de 3 mil seguidores no Twitter em janeiro, ele hoje acumula mais de 300 mil e
uma popularidade superior à do presidente. Segundo uma pesquisa do Datafolha
feita em março, 55% das pessoas ouvidas avaliaram positivamente suas atitudes
diante da pandemia, ante 35% quando o nome em questão era o de Bolsonaro.
Os números refletem, de certa forma, sua presença. Há quase
um mês, Mandetta está diariamente em rede nacional dando orientações em tom
professoral a uma população majoritariamente confinada. Em suas últimas
aparições, elevou os decibéis sobre a gravidade do problema, pedindo que fossem
redobrados os cuidados com o contágio. No Ministério da Saúde circulam
estimativas assustadoras sobre números de mortos e infectados — que vão além
dos dados oficiais divulgados, em razão da subnotificação decorrente da falta
de testes. Seu protagonismo foi, inclusive, um dos fatores a motivar a
unificação da comunicação do governo sobre a pandemia. As coletivas diárias no
Ministério da Saúde foram transferidas para o Palácio do Planalto e são, hoje,
comandadas pelo ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto. O chefe da
Saúde acabou vendo sua participação ser diluída.
Bolsonaro tem por hábito se irritar quando um ministro ganha
mais créditos por sua gestão do que ele próprio. Foi assim com Sergio Moro, na
Justiça, e, menos frequentemente, com Paulo Guedes, na Economia. A exposição de
Mandetta suscitou reação parecida. O presidente procurou dizer reiteradas
vezes, em entrevistas, que, se a condução da Saúde agradava, era porque havia
colocado uma equipe técnica, “diferente de outros governos”. Em outras
ocasiões, deixou a ciumeira transparecer de forma mais cristalina. Em reunião
no Planalto com o presidente do MDB, o deputado federal Baleia Rossi (SP), e
com Carlos Marun, ex-ministro de Michel Temer, mostrou-se incomodado com o fato
de Mandetta ter se reunido com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo
Tribunal Federal sem sua presença. “Eles fizeram uma reunião e nem me chamaram.
Só chamaram o Mandetta”, reclamou Bolsonaro, segundo fontes que estiveram no
encontro. Marun respondeu advertindo que, quando um presidente quer uma reunião,
cabe a ele convocá-la.
A desenvoltura política que o ministro da Saúde tem
mostrado, passeando sem maiores escoriações pelo fogo amigo do gabinete do ódio
sem perder a credibilidade técnica como médico, foi conquistada ao longo de 15
anos de vida pública. Em 2004, seu primeiro cargo no Executivo foi como
secretário de Saúde de Campo Grande, quando seu primo, o atual senador Nelsinho
Trad (PSD-MS), elegeu-se prefeito. Mandetta, filiado ao MDB, mudou-se para o
DEM antes de se eleger pela primeira vez deputado federal, em 2010. Em 2014,
ele se reelegeu, mas, em 2018, não quis se candidatar temendo uma derrota.
Em sua vida política, Mandetta passou por transformações. No
DEM, terminou deslocando-se à direita do partido, mais alinhado à elite agrária
sul-mato-grossense que tinha por hábito se reunir na churrascaria Vermelho
Grill para praguejar contra o PT. O político terminou, portanto, guardando
distanciamento de lideranças como o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e
ACM Neto, que preside a sigla.
Na Câmara, fazia discursos inflamados contra a contratação
de médicos cubanos pelo governo petista, sempre comparando a prática ao
trabalho escravo. Atuava muitas vezes em dupla com Ronaldo Caiado, que, como
ele, é médico ortopedista. Contudo, a divergência política não o impedia de
dialogar com a esquerda. O deputado federal Vander Loubet (PT-MS) elogiou o
convívio com o ministro. “O Zeca Dirceu tinha um problema de quadril e o
Mandetta vivia cobrando que ele operasse: ‘Está na idade de fazer’”, contou
Loubet, recordando o cuidado com o adversário que é filho do petista José
Dirceu. Quando a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) foi assassinada, em 2018,
Mandetta postou em suas redes uma extensa nota de pesar e repúdio — atitude
que, na atual gestão, seria malvista.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), também médica,
relatou boa relação com o ex-colega. “É uma pessoa que trata com diálogo.
Sempre foi gentil. Até para divergir é com diálogo”, disse. Para ela, Mandetta
tinha uma atuação considerada “séria” na Câmara. Em atitude hoje impensável
para um ministro bolsonarista, ele chegou a postar em uma rede social uma foto
de Feghali com sua filha, Marina, advogada no Rio de Janeiro, no dia em que as
duas se conheceram, durante um festival de cinema. Marina é mãe do único neto
do ministro, Gabriel, de quase 2 anos. Em suas redes sociais, ela demonstra
pouca afinidade com as ideias do governo que o pai integra. Em uma delas, no
período eleitoral, repostou um texto que dizia o seguinte: “Se seu voto é no
Bolsonaro, peço desesperadamente que você escute suas piores frases de novo.
‘Sou a favor da tortura’; ‘Homossexualidade se cura com cascudos na infância’;
‘Mulher tem que ganhar menos que homem porque engravida’; (…) Se você não quer
o PT no governo, ainda existem opções”.
Se nas relações pessoais não escondia seu lado moderado, na
Câmara Mandetta tinha como principais aliados expoentes da direita que primeiro
deu guarida a Bolsonaro. Além de Caiado, entre seus colegas mais frequentes
estavam Onyx Lorenzoni (RS), Alberto Fraga (DF) e Abelardo Lupion (PR), todos
do DEM, mas muito bem encaixados no bolsonarismo. Esse núcleo, acrescido do
governador dissidente, foi responsável por sua indicação para chefiar o
ministério. Assim como no caso de Tereza Cristina, ministra da Agricultura,
Mandetta não foi uma indicação do partido. Hoje, exceto por Caiado, de quem
segue amigo, o ministro está afastado do núcleo que um dia integrou. Fraga,
outrora aliado, chegou até mesmo a empreender uma tentativa frustrada de
fritá-lo em 2019, para que pudesse ocupar uma pasta na Esplanada.
No início do governo Bolsonaro, Mandetta era ávido defensor
da ideia de frear o crescimento da verba para a saúde pública. Para ele, o
ministério, que tem o segundo maior orçamento, atrás apenas da Educação, já era
“muito grande”. A pandemia o fez deixar essas convicções de lado, ao menos
temporariamente. Mas, se o ministro não costumava advogar por aumento nas
despesas públicas, amealhou alguns problemas trazidos pelo dinheiro privado.
Ele, seu primo, o senador Nelsinho Trad e outras 24 pessoas são alvo de duas
ações por improbidade administrativa, além de um inquérito que tramita na
Justiça Federal de Mato Grosso do Sul. São acusados de desviar R$ 8,1 milhões
da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande para a implantação de um
sistema eletrônico que deveria unificar as informações de Saúde. O caso ficou
conhecido em Campo Grande como escândalo Gisa, o nome do sistema — que nunca
funcionou totalmente. As investigações apontam ilegalidades na licitação, como
o favorecimento de um consórcio formado por empresas sem qualificação técnica,
sendo que uma delas teria pago uma viagem de Mandetta para Portugal. O MPF
também aponta a existência de doações ilegais de campanha ao hoje ministro por
parte de uma das empresas envolvidas no certame. O caso corre em sigilo no
estado e o ministro nega as irregularidades. “As provas apresentadas no
processo comprovarão que são infundadas todas as alegações do Ministério
Público”, disse o Ministério da Saúde, em nota.
Em Campo Grande, cidade onde nasceu, ele é Henrique Mandetta
— sem o primeiro nome. Em família, era chamado de “cabeça amarela”, pois,
quando criança, seu cabelo era mais claro que o dos irmãos e primos. É o caçula
de cinco filhos do casal Hélio e Maria Olga. Depois de cursar medicina na
Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, especializou-se em ortopedia em
Campo Grande e, posteriormente, em ortopedia infantil no Scottish Rite
Hospital, em Atlanta, Estados Unidos. Nos tempos da faculdade, conheceu
Terezinha Alves, com quem se casou, em 1990, na Igreja de Nossa Senhora do
Outeiro da Glória, no Rio. Além de Marina, o casal tem dois filhos mais jovens,
Pedro Henrique e Paulo Henrique. Devoto da leitura, o ministro é aficionado por
livros de história sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870), um dos maiores
conflitos da América do Sul e que marcou seu estado, que faz fronteira com o
país vizinho. Na intimidade, prefere uísque a cerveja, mas é o cigarro seu
maior vício — fumante aos 55 anos, ele está no grupo de risco segundo os
parâmetros do novo coronavírus. No ministério, costuma usar a pausa do cigarro
para bater papo com os servidores na calçada.
Mandetta também é botafoguense doente. No quintal de terra
batida da casa de sua avó Antonieta, a “vovó Teta”, aprendeu a jogar futebol,
sempre no meio de campo. O time que formava com seus irmãos e primos se chamava
Manequinho, em homenagem ao mascote do Botafogo. Uma vez, nos idos dos anos
1970, jogaram contra uma equipe de garotos de 10 a 14 anos integrada pelo
atacante Müller, que depois ganhou fama no São Paulo e já disputou a Copa do
Mundo. Mandetta gostava muito do esporte, mas estava longe de ser um gênio do
gramado. Não gostava do ataque. Nas palavras de seu primo, Fábio Trad, uma
expressão o define: “Um volante esforçado”.


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