Durante a Idade Média, quando os governos eram teocráticos, nos
tempos em que a lepra era o coronavírus de
hoje, as imagens sagradas eram exibidas em procissões que imploravam a Deus que
acabasse com ela. A ciência era perseguida na época. Basta lembrar a condenação
de Galileu pela Igreja.
Hoje, séculos depois, quando o mundo inteiro confia na ciência para encontrar
uma vacina contra o novo vírus, o presidente
Bolsonaro e seus 30% de seguidores apelam de novo à religião como
única esperança.
A cena do presidente de um país laico segundo a
Constituição, de joelhos com um grupo de fiéis ante alguns pastores evangélicos,
um dos quais profetizando que a partir daquele instante “ninguém mais morrerá
de Covid-19 porque o Brasil está sendo abençoado por Deus e por Jair
Bolsonaro”, revela que o presidente está convencido de que o Brasil já é uma
teocracia.
Essa leitura de Bolsonaro acaba de ser derrotada pela
opinião pública brasileira. Segundo as últimas pesquisas, 76% dos cidadãos apoiam a ciência seguindo os conselhos do
ministro da Saúde, que pediu que a população fique em casa.
Bolsonaro, ao contrário, e contra todos os outros líderes
mundiais, inclusive o norte-americano Donald
Trump, que no início fazia piada da epidemia, está ficando sozinho nesta
batalha quixotesca contra os moinhos de vento, com apenas os 30% que o seguem
em seu fanatismo místico e religioso. Até os militares, que aceitaram entrar em
seu governo contra a esquerda, hoje se sentem perplexos com o presidente, que,
segundo análise feita por um grupo de prestigiosos psicanalistas para a Folha de S. Paulo, sofre de graves distúrbios
psiquiátricos, como “onipotência, lógica paranoica, messianismo e estilo
narcísico”.
Os psicanalistas veem
no comportamento de Bolsonaro ―de querer ele mesmo buscar uma solução para o
coronavírus, desprezando a ciência e mantendo uma posição agressiva contra seu
ministro da Saúde― um exacerbado messianismo perigoso que poderia provocar uma
tragédia no país.
A esperança é que a grande maioria dos brasileiros esteja
demonstrando maturidade democrática e que, apesar de ser este um país
profundamente crente, saiba diferenciar entre o papel da religião,
que é pessoal e íntimo, e o da ciência.
A religião, seja qual for, pois todas merecem respeito, pode
servir de consolo aos que a professam para lutar contra as garras do desespero,
mas nunca poderá suplantar a ciência ―que é a que pode salvar vidas.
Eu respeito a força e a importância de todas as religiões,
assim como respeito os ateus e os agnósticos, mas abomino a existência de um
deus volúvel e classista que escolhe quem salvará e quem deixará morrer. Foram
o esforço e a inteligência do homem que permitiram, ao longo da história,
que o mundo ressuscitasse de todas as grandes catástrofes.
Todos os outros mecanismos que se empenham em ir contra a
ciência, colocando Deus como bandeira, são os melhores destruidores de
esperanças e os piores feiticeiros e charlatães.
Os verdadeiros santos desta nova peste que assusta o mundo
não são os que, como Bolsonaro, pedem orações e jejuns às pessoas, ou se
ajoelham diante dos pastores. São os médicos, enfermeiros e cientistas que
expõe a própria vida para buscar um remédio seguro que possa servir para todos.
Hoje um santo do coronavírus é o jovem médico chinês Li Wenliang, um dos primeiros a detectar a doença e da qual foi
vítima. E, com ele, todos os que, apoiados na ciência e na medicina, se
expõem para salvar vidas.
O pequeno Leonardo, o bebê de 50 dias que saiu ileso do
coronavírus na Itália, um dos países mais castigados pela epidemia, não foi
curado por nenhum milagre divino, mas pela medicina. Seus pais, cujo filho sorrindo
foi transformado numa metáfora da esperança que nunca morre, não haviam
colocado nele nenhum nome de santo, e sim do gênio da arte e da ciência, Leonardo
Da Vinci.
Lembro-me hoje de uma pequena história vivida na Itália,
numa cidadezinha minúscula de montanha. Os camponeses estavam desesperados
naquele ano porque a seca prejudicara as colheitas, seu único meio de
subsistência.
O pároco lhes prometeu que, se eles fossem à missa e à
procissão com o santo do lugar, a chuva chegaria, em perfeita sintonia com as
receitas teocráticas da Idade Média.
Aqueles trabalhadores de mãos calejadas e rostos marcados pelo
trabalho duro do campo acreditaram no padre. No meio da procissão, o céu
escureceu. As nuvens se amontoaram, e todos pensavam que estava chegando o
milagre da chuva.
Em vez de água, no entanto, o que as nuvens descarregaram
foi uma tremenda tempestade de granizo, com pedras do tamanho de maçãs que
acabaram destruindo a já ameaçada colheita. Aqueles homens e mulheres
decepcionados voltaram para suas casas e começaram a jogar, de suas janelas, as
imagens de santos e virgens em meio ao desespero. O simbolismo daquela cena,
que poderia parecer sacrílega, era apenas fruto do desespero e da decepção dos
pobres moradores do povoado ―e me serviu como reflexão durante meus estudos
sobre as religiões e suas mistificações.
As religiões, todas, são libertadoras dos nossos medos e
criadoras de esperança, mas se agitam como um bumerangue quando são vividas
como superstição e substitutas da ciência.
Muitos desses novos santos da ciência, que se sacrificam
para salvar vidas, são idosos e sabem que seus esforços de hoje servirão para
salvar novas vidas amanhã. É essa a maior grandeza do homem que resgata todas
as suas outras misérias.
A Martin
Luther King, o líder norte-americano que lutou contra o racismo,
que não desistiu do sonho de que um dia negros e brancos pudessem viajar no
mesmo ônibus, e que foi por isso assassinado, é atribuída a frase “se soubesse
que o mundo acabaria amanhã, ainda assim eu plantaria uma árvore hoje”. E o
patriarca Abraão, pai de todos os crentes, segundo a Bíblia,
plantou uma árvore, uma tamargueira, nos seus 100 anos. Foi alvo de chacota,
pois diziam que ele já não poderia ver a árvore crescer. Abraão respondeu que a
tinha plantado para que outros amanhã pudessem colher seus frutos. São essas
pessoas que fazem com que a esperança continue viva e se multiplique no mundo.
Dedico esta coluna ao médico e ministro da Saúde do
Brasil, Luiz Henrique Mandetta, um católico praticante que não pede
orações e jejuns contra o coronavírus e que dedica todas as suas energias em
sua cruzada a favor da ciência e na guerra contra os charlatães, que preferem
minimizar a tragédia colocando em perigo muitas vidas que ainda podem ser
salvas.


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