Com a recomendação de jejum nacional sendo alçada a política
pública de combate à covid-19, é bom lembrar que, de acordo com João, o fim dos
tempos chegará sob a liderança da Peste. Na sequência, virão a Guerra, a Fome
e, finalmente, a Morte.
Walther Scheidel, professor de história antiga na
Universidade de Stanford, também tem seus quatro cavaleiros do Apocalipse. Dois
são os mesmos elencados pelo “discípulo que Jesus amava”: as epidemias e a
guerra. Completam o quarteto o colapso do Estado e as revoluções socialistas.
Em “The Great Leveller: Violence and the History of
Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century” (que nas próximas
semanas será lançado no Brasil pela editora Zahar sob o título “Violência e a
História da Desigualdade”), Scheidel analisa os principais fatores que levaram
não ao Armagedon, mas sim à redução esporádica da desigualdade ao longo da
história da humanidade.
Com abundância de exemplos e dados, o autor argumenta que,
nas sociedades eminentemente agrárias que predominavam até o início do século
XX, as epidemias exterminavam grandes contingentes de pessoas. Em resposta à
escassez de mão de obra, o mercado de trabalho se reequilibrava com o aumento
dos rendimentos dos sobreviventes – e, assim, a distância entre ricos e pobres
diminuía.
Outras formas traumáticas de reduzir a desigualdade foram as
guerras, as revoluções e a falência do Estado. Ao romperem a estrutura social,
esses eventos levavam a uma redistribuição de poder e riqueza entre os
diferentes grupos, podendo ocasionar um momentâneo efeito “nivelador” das
condições de vida entre seus habitantes.
Com os intensos processos de urbanização, industrialização e
aprimoramento educacional da população mundial ao longo dos séculos XX e XXI, o
professor de Stanford deposita suas esperanças na mudança de preferências do
eleitorado como uma solução menos violenta para as graves crises que
enfrentamos. Em entrevista recente à BBC, Scheidel acredita que se a covid-19
for realmente devastadora, a população poderá demandar mudanças políticas e
econômicas na direção de um Estado de bem-estar social mais forte,
principalmente em países como Estados Unidos e Brasil.
A nova pandemia está expondo as diversas fragilidades do
modelo brasileiro de (sub)desenvolvimento. Nossa resiliência à crise está sendo
afetada pela crônica falta de dinamismo de nossa economia e à
irresponsabilidade fiscal dos últimos anos. E à medida que a doença avança,
outras deficiências ficam morbidamente mais claras: o baixo grau de
formalização do mercado de trabalho, a precariedade de nossa rede de proteção
social, as diferenças entre os sistemas público e privado de saúde e as mazelas
de nosso saneamento básico e das condições habitacionais.
Ao que tudo indica, infelizmente, ainda passaremos as
próximas semanas em isolamento social, acompanhando apreensivos a contagem de
mortos e a deterioração econômica, enquanto a covid-19 chega cada vez mais
próximo de nossos lares e famílias. Ainda não sabemos quando e nem como devemos
afrouxar o distanciamento social para permitir uma retomada segura das
atividades cotidianas. Muito mais importante, contudo, é pensar que tipo de
país construiremos depois do coronavírus.
A opção proposta pelo professor Scheibel passa pela
construção de um novo pacto social, em que os imensos déficits gerados pelos
pacotes de estímulo serão cobertos por impostos cobrados daqueles com maior
capacidade contributiva. Também haveria um estímulo ao aprimoramento dos
sistemas de assistência médica à população e de maior proteção aos
trabalhadores mais vulneráveis, eventualmente com a implementação de um
programa de renda básica universal. Dessa forma, o efeito nivelador da covid-19
seria alcançado com políticas públicas e econômicas mais progressistas.
No caso brasileiro, tenho sérias dúvidas se conseguiremos
fazer uma limonada desse amargo limão que é a pandemia provocada pelo novo
vírus. Ainda é cedo para afirmar, mas as medidas do governo para resgatar a
economia podem ter efeito negativo sobre a desigualdade.
Ao que tudo indica, a recessão será muito mais profunda e
duradoura do que esperávamos, e auxílios emergenciais de R$ 600 ou frações de
seguro-desemprego por três meses não serão capazes de neutralizar os severos
impactos sobre a renda dos mais pobres e desamparados. Enquanto isso, aqueles
que têm empregabilidade, economias e acesso ao crédito conseguirão superar os
tempos ruins de forma muito mais suave.
Novas leis e decisões judiciais tomadas sob a pressão da
emergência social também podem levar a ainda mais desigualdade. Nas últimas
semanas centenas de novos projetos de lei foram apresentados no Congresso
Nacional, boa parte deles pedindo proteção e tratamento especial para as mais
variadas categorias. No Judiciário, medidas liminares suspendendo efeitos
contratuais vêm sendo concedidas em todos os tribunais, influenciadas por uma
perigosa lógica de curto prazo que tem efeitos bastante deletérios num
horizonte mais largo.
Para piorar, a crise da covid-19 ainda teve a externalidade
negativa de interditar o debate sobre reformas que poderiam contribuir para as
condições de competitividade e até mesmo na distribuição de renda no Brasil.
Com a recessão afetando principalmente o setor de serviços, será muito difícil
retomar num curto intervalo de tempo a tramitação da reforma tributária, que
previa um tratamento equânime na cobrança de impostos sobre o consumo. Com
todas as energias concentradas nas medidas de saúde pública e econômicas,
também serão adiadas as discussões sobre a reforma administrativa e os
privilégios de certos segmentos do serviço público.
Quanto mais profunda a recessão, mais difícil será convencer
os setores mais privilegiados da sociedade a aceitarem uma tributação mais
progressiva; e quanto maior o crescimento da dívida, menos provável ampliarmos
nossos programas sociais. Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a
fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social
brasileira.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e
autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político
brasileiro”.


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