O trabalho corre silencioso na quarentena. No princípio da
noite, ouço o bater de panelas, e uma vizinha roda uma gravação do Hino
Nacional. É hora de um pequeno descanso, esquecer a contagem de mortos nos EUA,
Inglaterra, Espanha, Itália, o horror dos corpos insepultos nas ruas de Guaiaquil.
No meio da tarde, costumo ouvir a voz do prefeito numa
gravação voltada aos moradores do Pavão-Pavaozinho: “Olá pessoal, aqui é o
prefeito Marcelo Crivella.” Ele pede que fiquem em casa e que Deus proteja a
todos. Que cena, o Crivella pedindo que fique em casa; logo eu, que tinha tanto
o que fazer nessa pandemia.
Mas sou do grupo de risco. Há um grande debate sobre o que
fazer com os velhos. Uma escritora amiga me disse pelo telefone: antes os
velhos tinham valor porque concentravam a experiência; agora, com o Google,
podem se livrar da gente com facilidade.
Mas, para cada um nós, há uma experiência que não se acha no
Google. No meu caso, por exemplo, a quarentena é suave. Em primeiro lugar,
porque os mais pobres estão em espaços menores e mais escuros; os brasileiros
no exterior, encurralados em pequenos quartos de hotel, hostilizados pelos
nativos.
O isolamento não me é estranho. Alguns meses de cadeia me
ensinaram muito. Por isso, sempre estou buscando uma pequena fresta para o
banho de sol. Durante a clandestinidade, ficávamos em casa de simpatizantes. Os
mais procurados pela polícia iam para a “geladeira”. Não só éramos proibidos de
sair. Quando o dono da casa estava fora, não podíamos fazer barulho, espirrar,
tomar banho. Isso poderia chamar a atenção dos vizinhos. Era um ensaio de
petrificação silenciosa.
Diante do que está por vir, acredito mais na experiência
pessoal do que no Google. Imagino uma crise econômica braba e me lembro da
experiência de viver com pouco, comer não mais que o essencial.
Em Cuba tínhamos a comida exata. Lembro-me que no final de
um longo dia de estudos, caminhávamos algumas quadras para comprar um pão por
la libre. A expressão não significa comprar quantos pães quiser, mas sim que a
compra era feita por fora da caderneta de racionamento.
Aprendi ali que as fantasias sobre comida às vezes mobilizam
o imaginário das pessoas mais que as próprias fantasias eróticas. Nos grandes
desastres, nas guerras, a falta de comida e o desespero solapam a dignidade
humana, provocam regressões assustadoras.
Ser velho significou ter tido uma chance de testemunhar tudo
e uma oportunidade de morrer que nunca sabemos antecipadamente se vamos
aproveitar. Certamente o Google não responde a esta questão de Montaigne:
aquele que ensinar as pessoas a morrer vai ensiná-las a viver.
Quando tinha pouco mais de 18 anos, fiz uma reportagem para
a revista “Alterosa” sobre doença de Chagas, transmitida pelo barbeiro. Era num
povoado do interior de Minas. Assunto tão sério que atraiu uma dupla de
repórteres do “Saturday Evening Post”, na época uma revista importante.
Chegaram de avião, o fotógrafo gostou de mim e me ensinou a fazer um
establishing shot, uma imagem que descrevesse a história a ser contada. Ele
subiu no pequeno cemitério, usou as cruzes como primeiro plano e mostrou o
povoado no fundo.
Na doença de Chagas o coração é atingido, e as pessoas
morrem de repente. Ao concluir meu texto na volta, o editor Roberto Drummond
escreveu o título: “Aqui se morre como passarinho”.
Nessas ruminações de quarentena, não é que de certa forma
tenho de reconhecer que a morte naquele tempo era mais suave que agora e o
barbeiro, um inimigo melhor que o coronavírus? O tempos mudaram, poucos
sentiram. Noventa por cento dos equipamentos de proteção aos médicos são feitos
na China. Isso não é um tópico estratégico para quem pensa apenas na guerra
entre os homens.
Só que há algum tempo, a principal guerra é dos homens
contra a natureza. A estratégia não acompanhou os fatos. Alguém come um bicho
na China e instala-se o caos.
Alguns velhinhos de hoje já avisavam sobre os efeitos dessa
guerra, antes de o Google nascer.
É irônico ver agora como se discute com tanta sem-cerimônia
sobre quantos por cento deles devem desaparecer. Para quê? Para seguir na
marcha suicida que alguns chamam de progresso?
Artigo publicado no jornal O Globo em 06/04/2020


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