Thomas Hobbes deixa claro que a liderança política é
considerada como legítima na medida em que o soberano garanta a proteção de seus cidadãos. Se isso não
ocorrer, o acordo pode ser desfeito e a autoridade perde sua legitimidade em
governar. Esse é, no fundo, o coração do contrato social.
No campo das relações internacionais, há ainda um amplo debate sobre a
legitimidade externa de um governo, com repercussões sobre seu assentos nas
instituições multilaterais e sua capacidade de ser reconhecido como um
interlocutor genuíno.
Em muitos sentidos, o Brasil atravessa esse debate.
Internamente, decisões e comportamentos revelaram que o
governo não está interessado em assegurar a proteção de seus cidadãos. Seja na Amazônia, seja na periferia das grandes cidades.
A cada cova cavada, a legitimidade original obtida nas urnas
é desmanchada. A cada ataque contra a imprensa, ela é diluída. A cada
proposta de intervenção nas forças de polícia, tal direito adquirido é
suspenso. A cada perdão de multas ambientais, sua autoridade é
transformada em abuso de poder.
Ao colocar seus generais para ameaçar a lei, ao declarar
abertamente que sua família está acima do direito, ao gargalhar ao ouvir de seu
ministro que cada cidadão terá de se apanhar para sobreviver ou ao disparar
mentiras nas redes sociais, o governo vê refletido no chão sua sombra: a
silhueta do cadáver da democracia.
No plano internacional, a atual resposta do governo
Bolsonaro à pandemia se soma a uma série de desastres em sua
política externa. O país já havia sido colocado no centro do debate ao adotar
uma postura negacionista em relação ao clima. A deterioração da
imagem se aprofundou quando o presidente passou a ofender líderes estrangeiros
e fazer apologia a ditadores acusados de crimes contra a humanidade.
Em diversas ocasiões, ele foi preterido por outros
presidentes sul-americanos em reuniões internacionais, inclusive no G-7. O
resultado passou a ser um país dependente dos mestres em Washington e,
em relação ao restante do mundo, isolado.
Mas Bolsonaro —e sua rejeição em aceitar a gravidade da pandemia—
transformou o país em algo mais sério que pária internacional: um risco
sanitário.
Uma a uma, suas principais teses estão sendo rejeitadas pela
ciência. Depois da queda de dois ministros da Saúde, o governo trocou o
protocolo para incluir a cloroquina em suas recomendações. Na mesma
semana, um estudo da revista científica The Lancet chegou
à conclusão de que os riscos para a saúde superam as evidências positivas.
A OMS (Organização Mundial de Saúde), dias depois, optou
por suspender temporariamente todos os testes com o
remédio, medida que foi seguida pela França.
O distanciamento
social também foi chancelado pela agência, indicando que não há prova
de que um país com intensa transmissão simplesmente verá o desaparecimento do
vírus. A única saída para um país que não tem ampla capacidade de testas,
segundo a Organização Mundial de Saúde, é a adoção de medidas
sociais, como quarentenas ou lockdown.
Em termos políticos, o cenário é consequência do que o
governo semeou. Em abril, o Itamaraty ficou de fora de uma aliança mundial
criada para desenvolver uma vacina. Constrangidos em Brasília, os diplomatas
sequer sabiam que tal mecanismo estava sendo criado.
Semanas depois, os protagonistas na reunião anual da OMS em
meados de maio passaram a ser os presidentes da Colômbia e
Paraguai, todos comprometidos em lutar contra o vírus. A diplomacia brasileira
se recusa a informar sequer se houve um convite a Bolsonaro para ser um dos
participantes.
Foi apenas no final do mês, quando o Brasil já tinha
se transformado no novo epicentro da doença, que o Itamaraty
sinalizou que faria parte da iniciativa da OMS para o compartilhamento de
informações e desenvolvimento da vacina. Ainda assim, a adesão foi feita como
coadjuvante, deixando países como a Costa Rica e Equador como protagonistas na
liderança do projeto e assumindo uma posição que tradicionalmente era do
Brasil.
Também chamou a atenção nos bastidores da diplomacia o fato
de que o Brasil não fez parte dos líderes internacionais que, nesta semana,
iniciaram os trabalhos para redesenhar a economia mundial. A iniciativa lançada na
ONU com mais de 50 países contou ainda com um recado por parte do secretário-geral
da entidade, Antonio Guterres, contra presidentes que se recusem a aceitar a
gravidade da crise: abandonem a “arrogância”.
Mas essa exclusão não ocorreu por acaso. Ela foi resultado
de semanas de ataques por parte do governo brasileiro contra a OMS, sugerindo
que a entidade fizesse parte de um “plano comunista” para permitir uma maior influência da China num mundo pós-pandemia.
Em reuniões fechadas ou mesmo em público, o chanceler Ernesto Araújo vem defendendo a tese de que o vírus do
comunismo precisa ser enfrentado, o que lhe valeu chacotas de seus próprios
embaixadores espalhados pelo mundo.
No fim de semana, mais um golpe. E desta vez por parte do
principal aliado: os EUA. O governo de Donald Trump anunciou a proibição de voos de brasileiros para os aeroportos americanos.
Ainda que a medida tenha sido vendida pelo governo de Bolsonaro como uma questão
“técnica”, a decisão desmontou a tese do Planalto de que existiria uma relação
privilegiada entre Washington e Brasília.
A medida, aos olhos do restante do mundo, também foi
interpretada como um sinal de que a pandemia, no Brasil, está hoje fora de controle.
Bolsonaro ainda terá de se explicar diante da ONU. O relator
das Nações Unidas, Baskut Tuncak, decidiu ampliar suas investigações sobre o
Brasil e incluir as respostas do governo à covid-19 em seu informe que apontará
para as violações de direitos
humanos cometidas pelo governo ao não proteger sua população.
O gesto promete aprofundar uma imagem já desgastada e
levantar questões sobre a responsabilidade legal do governo diante das mortes.
Outros dois relatores também já criticaram o governo,
deixando o Itamaraty irritado com a nova onda de pressão internacional. Até
mesmo a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle
Bachelet, alertou que, se a postura negacionista do governo tivesse sido
evitada, vidas teriam sido salvas. No Tribunal Penal Internacional, queixas
também foram submetidas.
Enquanto isso, no Parlamento
Europeu, deputados têm proliferado cartas à Comissão Europeia pedindo que o
bloco reveja suas relações com o Brasil. Na Alemanha, deputados deixam claro
que não há, hoje, como ratificar o acordo comercial entre UE e o Mercosul.
Numa sociedade que começa a abrir suas portas, a Europa se
depara nas prateleiras de jornais com fotos de Bolsonaro são acompanhadas por
palavras como “caos”, “catástrofe”, “morte” e “populismo”. Não faltaram ainda
protestos, como o que um artista organizou na fachada da embaixada do Brasil em
Paris, sede justamente de um dos diplomatas mais vocais na defesa do
bolsonarismo.
E, assim, o governo perdeu sua legitimidade. Interna, ao
romper o contrato social com uma parcela enorme da população. E, externa, ao
violar deliberadamente acordos costurados para proteger o planeta.
A placa com o nome “Brazil” continuará a ser ocupada nas
mesas da ONU por embaixadores que representam o governo Bolsonaro pelo mundo.
E, internamente, o presidente continua em seu palácio.
Mas sua legitimidade acabou.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
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