sábado, 30 de maio de 2020

IGNORÂNCIA DA LEI

Editorial O Estado de S.Paulo

Quanto mais o presidente Jair Bolsonaro e seu entorno militar reclamam do Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que ele está avançando na jurisdição do Executivo e impedindo o chefe da Nação de governar, mais vai ficando claro que as acusações contra a Corte são absurdas e que as decisões tomadas por seus ministros são rigorosamente baseadas nas leis em vigor e na Constituição.

As mais recentes decisões do STF são prova disso. No caso da pandemia de covid-19, quando Bolsonaro tentou anular as medidas na área da saúde tomadas por prefeitos e governadores para combater o contágio da covid-19, o STF nada mais fez do que reafirmar a estrutura federativa do Estado brasileiro, tal como está prevista em vários artigos da Constituição. O artigo 1.º institui como forma de Estado a “República Federativa”. O artigo 18 afirma que o federalismo pressupõe autonomia administrativa dos entes federativos e deixa claro que não há uma relação de hierarquia entre eles. E o artigo 23 é taxativo quando afirma que é “competência comum da União, dos Estados e dos municípios zelar pela guarda da Constituição” em áreas essenciais, como a saúde pública.

Foi por isso que, ao julgar uma ação de inconstitucionalidade contra a MP 926, que dispõe sobre “medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública” e confere ao presidente da República “a competência para dispor, mediante decreto, sobre serviços públicos essenciais”, o STF decidiu, por unanimidade, que a MP não podia anular a competência dos Estados e municípios de legislar de forma concorrente em relação à política sanitária de saúde. A não observância da autonomia dos entes federativos constituiria uma “afronta ao princípio do federalismo”, disse o ministro Edson Fachin.

Outra decisão do STF que suscitou reclamações do presidente e de seu entorno militar, mas que também estava fundada no direito positivo, foi adotada pelo ministro Alexandre de Moraes após a demissão de Maurício Valeixo do comando da Polícia Federal (PF). Moraes ordenou que fossem mantidos os delegados federais envolvidos no inquérito de apuração das fake news contra integrantes da Corte. Nada mais fez do que se valer de suas prerrogativas como magistrado. O mesmo ocorreu quando concedeu liminar suspendendo o decreto de nomeação do delegado Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Por ser amigo pessoal da família Bolsonaro e por estar a PF investigando um de seus filhos, o ministrou alegou que a nomeação configurava “desvio de finalidade e inobservância dos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”, previstos pelo artigo 37 da Constituição.

O presidente e seu entorno militar também criticaram a decisão do ministro Celso de Mello de permitir a divulgação do vídeo da patética reunião ministerial de 22 de abril e de pedir ao procurador-geral da República que se manifeste sobre o pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de um de seus filhos. Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o cidadão Augusto Heleno classificou as medidas como “afronta à autoridade máxima do Poder Executivo”. Esqueceu-se, porém, como afirmou o STF, em nota, que Mello “limitou-se a encaminhar à PGR, que é o órgão da acusação, a notitia criminis, com esse pleito de apreensão formulado por três agremiações partidárias”. Lembrou, também, que o § 3.º do artigo 5.º do Código de Processo Penal “confere legitimidade a qualquer pessoa do povo para efetuar comunicação de crime perseguível mediante ação penal pública”.

É evidente, assim, que em momento algum o STF agiu por vontade individual de seus ministros. É evidente, também, que a Corte não tomou qualquer decisão à margem da lei e que aplicou rigorosamente a Constituição, segundo a qual, num sistema republicano e federativo não existe poder absoluto ou ilimitado. Portanto, a reação do presidente e de seu entorno – principalmente o cidadão Heleno – às decisões do STF não procedem. Tais reações carecem de base legal e mostram o nível de desinformação dos que estão à frente do Executivo, bem como sua ignorância sobre o funcionamento das instituições do País.

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