Havendo quem queira usar a suposta irregularidade do
inquérito 4.781 para flertar com o golpismo de Jair Bolsonaro ou, diante dele,
omitir-se, decretando um empate moral entre as partes, fique à vontade. Mas é
falso. Quando no exercício das competências penais originárias, previstas no
artigo 102, inciso I, alínea “b”, da Constituição, o STF preside o inquérito e
exerce a supervisão judicial. Qual a novidade?
Também o artigo 2º da lei 8.038 e os artigos 230 a 234 do
regimento interno do STF, que tem força de lei, disciplinam a questão. Essa
conversa de ilegalidade do inquérito é papo furado. De resto, está, claro:
Alexandre de Moraes não vai oferecer a denúncia. O conteúdo do inquérito será
remetido ao Ministério Público, que continua titular da ação penal.
“Ah, não poderia ter sido aberto de ofício, e o relator não
poderia ter sido escolhido pelo presidente do STF”. Poderia, como dispõe o
artigo 43 do regimento interno do tribunal. “Mas se fala ali em ‘infração à lei
penal na sede ou dependência do Tribunal'”. É o mais ridículo de todos os
óbices.
Como bem lembrou André Mendonça, atual ministro da Justiça
quando advogado-geral da União, “os fatos que atingem essa Corte Suprema e seus
Ministros são preponderantemente praticados pela internet (espacialidade
delitiva não prevista na literalidade da norma, dada a data de sua edição:
27/10/1980). Ou seja, a abrangência da previsão regimental ora sob análise
equivale à jurisdição da Corte, que, nos termos do artigo 92, § 2º, da
Constituição Federal, alcança todo o território nacional.”
Ignorância se corrige, má-fé, não.
A verdade é que as origens da pregação golpista, parte
investigada no inquérito, estão sendo exumadas. E, como quer o apóstolo Paulo,
muitos estão se vendo face a face. Não é por acaso que Augusto Aras,
procurador-geral da República Bolsonarista, recorre a uma ADPF que saiu da pena
do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para, diz ele, delimitar o alcance do
inquérito.
Randolfe é ou era da turma “Muda Senado”, que saía por aí a
se esgoelar, junto com a tropa golpista, em favor da “CPI da Lava Toga”. A
serviço da Lava Jato e do sergio-morismo, os valentes elegeram o Supremo como
inimigo. Cadê os Dallagnois e Pozzobons que, a exemplo de blogueirinhas
buliçosas, faziam tutoriais de como difamar a corte em nome do combate à
corrupção?
Sim, é uma vergonha sem par que o STF tenha de ter aberto um
inquérito de ofício. O Ministério Público Federal deveria tê-lo solicitado. Mas
como o faria se era parte ativa da cultura da difamação? Como agir se muitos de
seus próceres estavam na origem da campanha contra o tribunal, na qual, agora,
Bolsonaro pega carona na sua aventura golpista?
E, ora vejam, o MPF, que não apenas se omitiu diante da
escalada autoritária como a alimentou, continua a exercer a sua força
destrutiva. Reaparece explorando a fissura dos viciados na cloroquina do
combate à corrupção. Ressurge a maximização de uma obrigação moral e
administrativa como norte da democracia e como ponto de chegada, não como meio,
da virtude.
Eis a PGR a servir de pátio de manobra da sanha de Bolsonaro
contra os governadores. A Lava Jato destruidora de instituições –que morreu
como projeto de poder de Sergio Moro e dos “white blocs” do MPF– renasce em espírito
com Aras, agora sob os auspícios do bolsonarismo.
E, desta feita, os valorosos moralistas contribuirão para
esconder a montanha de mortos com uma montanha de acusações. A campanha
eleitoral de 2022 já começou. Por ora, o único adversário de Bolsonaro são as
instituições. As investigações da PGR tendem a ser o crematório de milhares de
pretos de tão pobres e pobres de tão pretos anônimos.
Sim, os ladrões estão aí. Sempre estiveram e têm de ser
combatidos. A questão é definir o que preservar nessa luta. Até agora, temos
destruído instituições e valores democráticos.
Não use, ó moralista da isenção, o inquérito 4.781 como desculpa para a sua
covardia ou omissão. Não há nada de errado com ele. Quanto a você…
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