O poeta Carlos Drummond escreveu estes versos: Deus me deu
um amor no tempo de madureza/ quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a
verme. Conversando com um político da minha geração, esta semana, lembrei-me do
poeta quando ele disse: “Deus nos deu uma luta pela democracia, nos últimos
anos de vida”.
Não esperávamos por essa. No entanto, não dá mais para
ignorar que o sinal vermelho do regime autoritário está aceso no Brasil.
De um lado, vê-se um presidente falando em armar o povo,
como Mussolini ou Chávez, e isso diante de uma plateia de generais indiferentes
à gravidade desse discurso; de outro, um general falar em crise institucional
porque um ministro do Supremo apenas cumpriu um artigo do regimento interno,
despachando um pedido para o procurador-geral da República considerar: a
perícia no telefone do presidente da República.
Nossa atenção estava toda concentrada na pandemia, o maior
desafio depois da 2.ª Guerra Mundial. Mas um ministro diz na reunião do
conselho que é preciso aproveitar nossa atenção no coronavírus para passar uma
boiada de medidas que não suportam a luz do sol.
Pois muita coisa está se passando diante dos nossos olhos
consternados com a sucessão de mortes e amedrontados com a síndrome
respiratória aguda. Bolsonaro seduziu as Forças Armadas com verbas
orçamentárias e uma suave reforma da Previdência. E mais ainda, fez um apelo ao
salvacionismo que viaja no espírito deles desde a Proclamação da República e
abarrotou o governo com militares.
Tudo indica que estão anestesiados. Generais reagem com
sonolência a um projeto de milícias armadas. Sabem que Bolsonaro é homem de
denunciar fraudes nas eleições que venceu, logo estará pronto para pegar em
armas quando for derrotado adiante.
A origem positivista marcada pela aliança com a ciência foi
jogada no lixo e um general se adianta para substituir médicos e inundar o Brasil
com uma cloroquina que a OMS não aprova. Se as Forças Armadas resolveram
encampar a política negacionista de Bolsonaro diante do vírus, se aceitam que
milhares de mortes sejam debitadas na sua conta, é porque já decidiram mandar
para o espaço o tipo de credibilidade que ganharam nos últimos anos.
Elas vêm pra cima com o mesmo ímpeto com que os militares
venezuelanos defendem o seu governo autoritário. Por isso é preciso preparar a
resistência.
A primeira lição é não ver essa luta, que para alguns se dá
no final da vida, com os mesmos olhos da juventude. Mesmo porque só generais
incompetentes veem uma nova batalha como se fosse a repetição da anterior.
Nada de armas. Num conflito moderno, a superioridade moral é
decisiva. Eles vão se enrolar nas benesses do governo numa das crises mais
profundas da História.
Olhar para o mundo. Não como no passado, exportando
relatórios clandestinos e, com alguns contatos, denunciar desrespeito aos
direitos humanos. Isso não é mais o principal. Agora existe a internet, uma infinidade
de contatos possíveis com o planeta. Não precisamos comover apenas com corpos
torturados, mas convencer os outros povos de que um governo cuja política
destrói sistematicamente a Amazônia e favorece epidemias como a do coronavírus
é ameaça também à existência deles.
Compreendo que ter o mundo a favor não basta para derrubar
um regime autoritário. A Venezuela é um exemplo de que sem uma força coesa
internamente não se chega a lugar nenhum. Aí está realmente o problema central:
o instrumento. Ele precisa ser uma frente democrática ampla, madura, sem
conflitos de egos, sem estúpidas lutas pela hegemonia, tão comuns na esquerda.
Chegamos perto disso no movimento pelas diretas. Candidatos
a um mesmo posto conviviam harmonicamente no período de lutas e mais tarde
buscavam caminho próprio nas eleições. Mas o próprio movimento das diretas é
muito velho para o momento. Novas forças surgiram. Atores políticos menos
experientes, mas com a capacidade de falar para milhões de pessoas, entraram em
cena.
Na conversa que tive com o amigo disposto a lutar a última
luta da vida, chegamos à conclusão de que é preciso apenas um núcleo que saiba
contornar as bobagens dos que só pensam no poder e consiga estimular a
criatividade social, diante dessa ideia de que a democracia não pode morrer no
Brasil.
Não adianta ficar reclamando que o Congresso e o Supremo não
conseguem frear a marcha totalitária. Isso depende de nós: é só querer. Na
verdade, milhares hoje dão sua pequena contribuição, criticando, resistindo, às
vezes até ridicularizando pelo humor.
Todo esse esforço molecular está, na verdade, ligado entre
si. O que às vezes impede a consciência dessa união é o desprezo pela política,
compreensível pelo que ela se tornou no Brasil.
Mas não se trata de aderir a um partido, militar no sentido
clássico. A luta contra o coronavírus, por exemplo, é uma ampla frente pela
vida que vai do carregador de maca ao cientista. As pessoas estão unidas pela
urgência do presente, sem perguntar de quem é a culpa pelo vírus.
Da mesma forma, não interessa agora saber de quem é a culpa
pela marcha do obscurantismo. É preciso detê-la.
Artigo publicado no Estadão em 29/05/2020
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