sábado, 27 de junho de 2020

A GRANDE CHANCE DO SANEAMENTO

Míriam Leitão, O GLOBO

Imagine, apenas imagine, que o Brasil tivesse água tratada chegando na casa de todos os brasileiros. Hoje uma população do tamanho da do Canadá não tem serviço de água no Brasil e, portanto, não pode seguir o primeiro protocolo para o combate à pandemia. Outros milhões têm um fornecimento intermitente. Imagine que o Brasil tivesse coleta e tratamento de esgoto. O país teria poupado milhares de vida nessa pandemia.

Nesse momento em que notícias boas são raras, é preciso comemorar o passo dado no saneamento. Ele não garante nada, esqueça os números sempre bilionários que aparecem na economia. Mas o fato é que o novo marco do saneamento estabeleceu datas. Daqui a 13 anos, ou 20, as empresas que prestam serviço terão que entregar a universalização. No meio do caminho haverá metas intermediárias. E a ANA, a agência das águas, será a reguladora-mor.

— Não tem país com esse potencial, acho que só a Índia, mas ela está muito atrasada. As grandes companhias, Suez, Eólia, Águas de Barcelona, não têm para onde ir. Todo mundo está de olho no Brasil. Hoje eu recebi um japonês no escritório. A primeira pergunta que fazem é: e se o novo prefeito não quiser ou o governador tirar o contrato. No novo marco fica mais difícil essa instabilidade. O Brasil é uma jabuticaba, tem 52 agências reguladoras, mas agora haverá uma coordenação federal. A ANA vai criar normas para as agências — diz Edison Carlos, presidente do Trata Brasil.

Hoje só 6% das empresas são privadas, o resto é estatal e 75% são estaduais. O Brasil já viu o suficiente para saber que não é porque a companhia é privada que é boa. Nem para achar que a empresa estatal é justa. Conhece a Cedae e a sua geosmina. Viu que a Odebrecht Ambiental teve que ser vendida, depois de escândalos. A subsidiária da Galvão também caiu na Lava-Jato. O que é importante é haver estímulo à competição, transparência, metas de desempenho, e data para que o Brasil saia da idade média em termos de saneamento.

O novo marco deve muito ao trabalho do senador Tasso Jereissatti, que vem há alguns anos tentando desfazer o cipoal de Medidas Provisórias que caducam ou projetos de lei que precisam ser negociados. O projeto final acabou tendo que fazer concessão para ser votado. Uma delas: as atuais empresas podem renovar os contratos por 30 anos. Só que terão que provar que conseguem chegar nas metas estabelecidas. Edison Carlos, que está nessa estrada há muito tempo, disse que nunca viu um ministro da Economia tão empenhado nesse assunto quanto Paulo Guedes. O primeiro movimento para sair da inércia em que estava o setor foi dado no governo Temer, mas agora é que se conseguiu aprovar.

— Nas regras atuais o prefeito já podia fazer licitação, mas é quase caso a caso. O prefeito precisa estar incomodado com a empresa operadora do município, chamar outra empresa para fazer uma análise, abrir processo de licitação. O setor privado nunca conseguiu ganhar escala. Niterói, Piracicaba, Limeira, Campos, Campo Grande, umas cidades em torno de Porto Alegre, estão com empresas privadas. Em geral, o prefeito não quer brigar com o governador, e a estatal vai ficando — diz Edison Carlos.

Agora haverá um incentivo maior para a competição, as regras estão mais claras, os municípios se reúnem em consórcios e a empresa concessionária terá que provar que tem meios de chegar aos seus objetivos. Se tudo der certo, será um estímulo econômico enorme.

— Movimenta as indústrias de plástico, aço, cimento, equipamentos, produto químico, engenharia, consultoria de arquitetura, tudo se movimenta na economia quando o país investe em saneamento — explica.

Quando se diz que o Brasil “tem potencial” nessa área é porque nosso atraso é tão grande que há muito a fazer. Isso pode ser uma das molas da retomada pós-pandemia. Mas o grande capital não financia país onde há incerteza regulatória, agora já há um marco. Não é só isso. É preciso ter estabilidade política. E pelas regras de conformidade muitos fundos só investem em países que respeitam o meio ambiente.

Imagina um país em que o presidente ameaça a suprema corte e dá avisos enigmáticos de que “está chegando a hora”. Imagina um país em que o ministro do Meio Ambiente propõe aproveitar a pandemia para driblar a lei ambiental. Foi esse recado que foi enviado essa semana às embaixadas pelos fundos de investimento. Um país só pode ser moderno por inteiro. Não existe progresso pela metade.

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