Um dia desses, pressionado por dívidas que atingiam a casa
de 3 milhões de reais, Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro,
queixou-se de ter sido abandonado pelos amigos. E escreveu na sua conta no
Twitter que o presidente Jair Bolsonaro deveria enfiar naquele lugar a medalha
que lhe conferiu no ano passado, durante viagem aos Estados Unidos. Dispensava
a honraria.
Esse pode não ter sido o propósito de Bolsonaro, mas ao
escolher Carlos Alberto Decotelli para ministro da Educação, ele enfiou goela
abaixo do autoproclamado filósofo em apuros econômicos um nome que lhe é
estranho. E logo no lugar que Olavo havia emplacado os dois últimos e
desastrosos ministros – o colombiano Ricardo Vélez e o fugitivo Abraham
Weintraub, de triste memória.
Ex-oficial da Marinha, professor da área de finanças na
Fundação Getúlio Vargas, Dacotelli era o presidente do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) quando o órgão publicou um edital de R$ 3
bilhões que foi suspenso pela Controladoria-Geral da União (CGU) por suspeitas
de fraudes. História estranha, essa, que ninguém esclareceu até hoje.
O pregão previa a compra de computadores, notebooks,
projetores e lousas digitais para alunos das redes públicas de ensino estaduais
e municipais. Relatório de auditoria da CGU apontou que a licitação estimou um
número desnecessário de computadores. Só para a Escola Municipal Laura Queiroz,
em Minas, seriam 30.030 laptops educacionais. Detalhe: a escola só tinha 255
alunos.
O edital foi publicado no dia 21 de agosto do ano passado.
Decotelli deixou o cargo uma semana depois. Foi substituído pelo advogado
Rodrigo Sergio Dias, indicado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O episódio não manchou a biografia de Decotelli aos olhos dos ministros
militares do governo. E foram eles que convenceram Bolsonaro a promovê-lo a
ministro.
Duro golpe para a chamada “ala ideológica” do governo, como
se fosse possível faltar ideologia às demais alas. Nas redes sociais,
inspirados por Olavo e sempre obedientes a ordem de comando do vereador Carlos
Bolsonaro, os bolsonaristas de raiz, os mais sinceros, são justamente os que
defendem o presidente, faça o que ele o que fizer. Devem estar se sentindo
traídos.
Mas não só por isso. Desde a reunião ministerial de abril
último, célebre pelos rolos que produziu, Bolsonaro começou a marchar para trás
com medo de não completar o mandato. O medo bateu no teto com a prisão de
Fabrício Queiroz, parceiro do seu filho Flávio em negócios suspeitos.
Finalmente, parece ter-se rendido aos conselhos dos generais para não criar
mais turbulências.
Abandonou seus devotos no cercadinho do Palácio da Alvorada.
Viajou ao Rio para o enterro de um paraquedista no domingo em que eles foram às
ruas de Brasília para defender uma nova intervenção militar. Acelerou a entrega
de cargos ao Centrão e a liberação de dinheiro para prefeituras controladas por
deputados e senadores encantados com tanta generosidade.
Nunca mais acenou com um golpe. Deu para exaltar a harmonia
entre os Poderes. E, na sua live de ontem no Facebook, lembrou os mortos pela
pandemia pedindo ao sanfoneiro e presidente da Embratur, Gilson Machado, que
cantasse a “Ave Maria”. É verdade que, no fim da apresentação, voltou a
criticar as medidas de isolamento social. Ninguém é perfeito.
Bolsonaro reencarnado como presidente moderado antecipou-se
ao Congresso e resolveu estender por mais três meses o auxílio emergencial para
os brasileiros mais pobres. E concordou com a passagem para reserva do general
Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo. Foi mais uma exigência
dos generais da ativa que preferem manter distância da política.
Em 1964, quando o regime militar ainda fingia não ser uma
ditadura, o jornalista Millôr Fernandes escreveu:
– Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que
certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que
determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo
continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se
o governo continuar deixando que as pessoas pensem por sua própria cabeça…
corremos o risco de em breve cairmos numa democracia.”
Pois é. Se Bolsonaro não atacar mais a imprensa, se não
ameaçar mais o Congresso e nem marchar sobre o prédio do Supremo Tribunal
Federal, se desistir de enfraquecer a democracia e, principalmente, se mantiver
a boca fechada… corremos o risco de em breve cairmos num governo normal.
Duvida? Eu também.
Quando a Justiça para de fingir que é cega
A vitória de Flávio Bolsonaro
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, uma vez acionado como será,
corrija a decisão esdrúxula e suspeita da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Rio que, por 2 votos contra 1, recriou o foro privilegiado para quem
o havia perdido – no caso, o atual senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um do
presidente da República.
Mais do que um atentado à inteligência, a decisão foi uma
afronta ao Supremo que em 1999 estabeleceu que foro privilegiado só vale em
caso de crime cometido no exercício do cargo. Investigado por desvio de
dinheiro público, à época do suposto crime Flávio era deputado estadual. Deixou
de ser no final do ano passado.
“Não há a menor dúvida que a decisão do Tribunal de Justiça
do Rio é diversa da decisão do Supremo”, disse o ministro Marco Aurélio Mello.
“Isso é o Brasil! É o faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso.
Cada cabeça uma sentença”. Ouvidos por este blog, mais dois ministros foram na
mesma linha de Mello.
O autor do voto que transferiu da 1ª para a 2ª instância da
Justiça o inquérito que envolve Flávio e Fabrício Queiroz foi o desembargador
Paulo Rangel. Em livro que escreveu, Rangel desancou uma lei de 2002 que
garantia o direito ao foro a autoridades que haviam deixado seus cargos.
Contraditório? E daí?
Daí que seu voto foi decisivo para tirar do caso o juiz
Flávio Itabaiana, da 1ª instância, que quebrou o sigilo fiscal do senador
enrolado e mandou prender Queiroz. Itabaiana tem justa fama de juiz que come
abelhas, de preferência as africanas. As decisões que ele tomou poderão ser
anuladas por órgão especial do tribunal.
O Tribunal de Justiça do Rio é famoso, digamos assim, por
sua generosidade com políticos de grosso calibre e pessoas afins. Não é o
único. Em julgamento que durou 4 minutos e meio, o do Distrito Federal,
anteontem, absolveu a empresária Maria Cristina Boner, condenada por pagamento
de propina para obtenção de contratos.
Maria Cristina vem a ser a ex-mulher de Frederick Wassef. Que vem a ser o ex-advogado de Bolsonaro e de Flávio na casa do qual Queiroz foi preso. Wassef é chamado de homem-bomba por ministros de Bolsonaro. Eles temem que Wassef possa um dia contar tudo o que sabe sobre a família presidencial brasileira.
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