Os shows de Gilberto Gil e Milton Nascimento no fim de
semana emprestaram uma trilha sonora sutil e linda ao clima de resistência ao
autoritarismo. A pesquisa da “Folha de S.Paulo” trouxe o alento de que aumentou
para 75% o apoio à democracia entre brasileiros. Novas manifestações da
coalizão de políticos e de atores da sociedade civil surgiram. O Brasil parece
ter recuado várias quadras no seu processo histórico, tendo que retomar o
esforço de convencimento das virtudes da democracia e lembrar o que foi a
ditadura. É necessário?
O vice-presidente Hamilton Mourão, em artigo publicado no
“Estadão” há um mês, disse que lendo “colunas de opinião e os despachos de
egrégias autoridades” fica a impressão de que “sessentões e setentões nas
redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados
de agitação estudantil”. Aqueles anos não foram dourados — chumbo é o elemento
químico que melhor descreve o período — e a demografia derruba a tese.
Na faixa etária de 65 anos ou mais estão menos de 10% da
população. Metade brasileiros tem até 33 anos, é mais jovem que a democracia.
Quem tem hoje 43 anos nasceu em 1977, o ano da última luta dentro do Exército,
quando a linha dura, encarnada pelo general Sílvio Frota, foi derrotada pelo
ditador Ernesto Geisel. Daí para o final do governo militar foram ainda sete
anos. O Brasil se livrou penosamente do arbítrio, construiu sua democracia com
esforço e deveria estar no trabalho árduo de aperfeiçoá-la. Quem vê de forma
idílica aquele período terrível está dentro do governo, e não fora dele. O
debate voltou porque ficou inevitável diante da agenda do atual presidente da
República.
A democracia tem maioria de defensores, segundo Datafolha,
mas há números que assustam. Some-se a parcela dos que concordam que é preciso
fechar o Supremo Tribunal Federal com os que discordam em parte ou concordam em
parte e teremos 39% aceitando, total ou parcialmente, o fechamento do STF. Os
que defendem o tribunal são 56%. Ainda que 62% atestem que o legado da ditadura
foi ruim, 25% dizem que a ditadura deixou mais realizações positivas do que
negativas. É preciso olhar também o aviso negativo dos números.
Na entrevista à “Época”, Mourão defende os que estão sendo
investigados pelo Supremo no inquérito das fake news, dizendo que eles não
ameaçam ninguém e que deveriam pagar uma cesta básica e pronto. Totalmente
diferente foi o tom usado por ele para definir os que se opõem ao governo. No
artigo do “Estadão”, de 3 de junho, chamou os manifestantes contra Bolsonaro de
“baderneiros”, “umbilicalmente ligados ao extremismo internacional”. Disse que
eles são “caso de polícia e não de política”. No dia seguinte, Bolsonaro os
chamou de “terroristas”.
O problema não são apenas os que pedem intervenção militar.
Os atos ficaram muito mais importantes quando o presidente participou e os
estimulou a seguir adiante. Por que a manifestação pró-ditadura do domingo não
teve o mesmo impacto? Porque o presidente não foi. Bolsonaro tem aproveitado os
últimos fins de semana para sempre fazer viagens não anunciadas a algum
destacamento militar. Primeiro, no entorno de Brasília, neste fim de semana, em
Minas Gerais.
Como disse Fernando Gabeira no artigo de ontem neste jornal,
a democracia atualmente é comida pelas bordas. É a maneira como o autoritarismo
se instala e essa é uma república com muitas tentativas de intervenção militar.
O país vem dizendo, de diversas formas, que percebeu o risco.
Gil em festa junina de aniversário cantou com a família
clássicos nordestinos. Um, de Dominguinhos e Fausto Nilo, parecia feito agora:
“Ô tempo duro no ambiente/ Ô tempo escuro na memória/ O tempo é quente/ E o
dragão é voraz/ Vamos embora de repente/ Vamos embora sem demora/ Vamos pra
frente que pra trás não dá mais.” Esse duplo dizer aprendeu-se naquele tempo.
Milton, no domingo, cantou profundo como se faz em Minas: “Que tragédia é essa
que cai sobre todos nós?”
Pode-se entender disso a pandemia que já matou tantos brasileiros, pode-se entender muita coisa. A delicadeza poética foi afinada na ditadura. A formação de frentes também foi aprendida naquela época. A resistência tem muitos caminhos. O projeto de Bolsonaro é enfraquecer a democracia. Seria estúpido não ver.
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