A última pesquisa Datafolha mostrou que o apoio à democracia
disparou e atingiu o maior índice desde que começou a ser medido, em 1989.
Setenta e cinco por cento apoiam hoje a democracia, ante 62% que a apoiavam em
dezembro de 2019 e índices ainda menores no passado.
Uma interpretação possível, como a que constava na manchete
da Folha de domingo (“Apoio à democracia bate recorde diante do risco
Bolsonaro”), é a de que, reagindo às ameaças de ruptura institucional, os
brasileiros reforçaram seu apoio à democracia. Mas será que essa é a
interpretação mais plausível?
Antes da pesquisa de junho de 2020, o recorde de apoio à
democracia havia sido registrado em outubro de 2018, às vésperas da eleição
presidencial, quando a dúvida era se Bolsonaro venceria apenas com larga
vantagem ou se elegeria logo no primeiro turno.
O que parecia explicar aquele recorde de apoio à democracia
era o fato de um candidato outsider, sem alianças, sem financiamento de
campanha e sem tempo de TV ter conseguido derrotar todo o establishment
político. De fato, se deixássemos de lado que esse candidato fazia apologia da
ditadura militar e defendia a tortura —como parece que fez seu eleitor—, aquele
sucesso eleitoral mostrava mesmo um vigor da democracia brasileira e um triunfo
da soberania popular.
O fenômeno de 2018 talvez seja a chave para entender o novo
recorde de 2020. A leitura de que o crescente apoio à democracia é apenas
reação contra o autoritarismo de Bolsonaro despreza o fato de que, se uma parte
dos bolsonaristas faz apologia da ditadura, celebrando até mesmo o AI-5, uma
parte maior adotou o léxico da democracia.
Estes últimos acreditam que é preciso proteger a democracia
de uma ditadura do STF e dos governadores: do Supremo, porque extrapola seu
papel ao se impor sobre o Executivo, e dos governadores, porque ameaçam prender
os cidadãos sob o pretexto de um vírus cuja letalidade é exagerada. Para eles,
seriam também antidemocráticas as tentativas de censura às redes sociais, sob o
pretexto de combater notícias falsas, assim como a interferência de organismos
internacionais, como a OMS, que ferem a soberania nacional.
Enquanto uma parte do bolsonarismo faz o discurso da ordem
autoritária, outra parte concebe esse mesmo projeto como a expressão mais plena
da democracia. Isso talvez explique o fato de que, na pesquisa Datafolha, quem
avalia bem Bolsonaro apoia menos a democracia, mas só um pouco menos (68%
contra 79% dos demais).
Tanto críticos como apoiadores de Bolsonaro celebram a
democracia –mas atribuem sentidos muito diferentes a ela.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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