Claro que a história não se repete, senão como farsa ou
tragédia. Mas os momentos históricos trazem lições nas suas próprias
dessemelhanças ou representam uma certa continuidade que vale a pena ser
percebida.
A campanha das Diretas
Já foi a maior mobilização popular do Brasil no século 20. Realizada
praticamente em todo o território nacional, a partir de milhares de
manifestações, sem que uma gota de sangue fosse derramada. Sem que uma vidraça
fosse quebrada. Isso irritava ainda mais os militares e civis do regime. As
agressões verbais e físicas vinham da parte dos próprios generais da ditadura,
que classificavam a campanha como baderna e sitiaram Brasília militarmente dias
antes da votação da emenda Dante de Oliveira. Na boa tradição fascista, o
general Newton Cruz, além de cercar o Congresso Nacional, promovia uma
verdadeira arruaça. Distribuía chicotadas do alto do seu cavalo branco de
"Napoleão de hospício", ordenava golpes de cassetete e bombas de gás
contra o buzinaço das Diretas. Ridículo e histérico, bradava: "Buzina
agora que eu quero ver, seu filho da p...". Mas o buzinaço não parou. E
"Nini", como era chamado, foi parar no lixo da história.
A maior semelhança das Diretas Já e a campanha do "impeachment
já" é uma contraposição à lógica tradicional ou a uma certa
racionalidade politica. A primeira teve início como uma proposta de um pequeno
grupo de deputados do então PMDB para que se fizesse uma campanha em torno da
PEC (Proposta de Emenda à Constituição) apresentada pelo deputado Dante de
Oliveira.
O líder da bancada federal do partido, o corajoso deputado
Freitas Nobre, autorizou a formação de uma comissão que formulou um pequeno
plano de marketing, depois aprovado pela bancada e levado à direção nacional do
PMDB, presidido por Ulysses Guimarães —que, com audácia e habilidade, ganharia
os governadores e venceria as resistências "racionais" de alguns dos
principais líderes da época. Os argumentos são parecidos aos de hoje em relação
ao "impeachment já"; principalmente o de que não teríamos os votos
necessários no Congresso.
Mas a verdade é que, ao longo dos "15 meses que
abalaram a ditadura", subtítulo do livro que eu e Dante de Oliveira
lançamos em 2004, a campanha das Diretas Já combinou, talvez como nunca na história,
uma intensa mobilização popular com uma grande atividade parlamentar e política
que culminou com uma votação espetacular no dia 26 de abril de 1984: 298 votos.
Faltaram apenas 22 para que a emenda fosse aprovada. O cerco militar a
Brasília, o erro de não se fazer uma greve geral, a chantagem explícita e a
corrupção conseguiram os 65 votos contra as Diretas Já e as abstenções
necessárias para a derrota da emenda Dante de Oliveira. A emenda derrotada no
Parlamento seria, entretanto, vitoriosa na história. Poucos meses depois, a
ditadura foi definitivamente superada com a vitória de Tancredo Neves em
eleição indireta no Colégio Eleitoral, após uma verdadeira campanha popular sob
a bandeira de "Tancredo Já", numa clara referência às Diretas Já.
Hoje, como ontem, as forças
democráticas não têm maioria de votos para o "impeachment
já". Em compensação, em vez de uma só PEC, temos mais de 30 pedidos de
impeachment. Em 1984, tínhamos um general que preferia o "cheiro dos
cavalos ao cheiro do povo". Hoje, temos um capitão afastado por mau
comportamento do Exército que, diante da morte de milhares de brasileiros,
pergunta: "E daí?".
Temos a emergência de um grupo de brasileiros que, embora
francamente minoritário, é galvanizado por ideias racistas, misóginas,
homofóbicas e de ódio à democracia —neste caso, mais pelas suas virtudes do que
pelos seus defeitos. E temos, também, um novo campo de batalha político,
inimaginável em 1983 e 1984, que é a comunicação das redes sociais pela
internet.
Mas algo me diz que nem a pandemia de Covid-19. nem o vírus
do fascismo que contaminou pouco
mais de 20% da população brasileira —e nem o envolvimento de alguns
militares no governo de Jair Bolsonaro--, impedirão a luta de mais de 70% do
povo brasileiro pela democracia, traduzida na palavra de ordem
"impeachment já!"
Domingos Leonelli
Ex-deputado federal, é coautor do livro ‘Diretas Já, 15 Meses que Abalaram a Ditadura’ (ed. Record), escrito com Dante de Oliveira, e coordenador do site www.socialismocriativo.com.br
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