Em meio a uma trágica pandemia, a maior catástrofe vivida
pelas atuais gerações, devastadora para vidas humanas e avassaladora para o
sistema produtivo, o Brasil se obriga a enfrentar outra frente desafiante: a
defesa da democracia como um valor essencial para organizar a nossa sociedade.
Espantosa missão, seja porque há pouco mais de três décadas saímos de uma ditadura,
seja porque já temos problemas demais a superar, seja porque “estamos em pleno
século 21 sendo afrontados com discursos, ameaças e situações medievais”.
Inacreditável, mas terrivelmente real.
A partir de 1964, foram 21 anos de arbítrio, com censura à imprensa
e às artes, exílio forçado de concidadãos, cassação de direitos políticos,
desaparecidos e presos políticos, torturas e mortes nos porões da opressão,
supressão de eleições, interdições a liberdades civis e políticas (opinião,
reunião, organização, etc.), entre tantas tragédias urdidas nos “anos de
chumbo”. Ao fim, o poder civil recebeu o País com um endividamento externo
irresponsável e a economia em frangalhos.
Nos anos 1970, na universidade, entrei nos movimentos
sociais em busca da retomada das liberdades em nosso país. Nesse tempo de
embates e formação política, tive um aprendizado fundamental: a democracia é um
valor universal a nortear as formas de conquista e exercício do poder em toda e
qualquer sociedade que se queira civilizada e humanística.
Sob a Constituição de 1988, reconstruímos a democracia. Não
foi um tempo perfeito, como nenhum foi ou será, até porque a política não é
feita por deuses, mas por seres humanos, suscetíveis de erros e imperfeições.
Mas é inegável que percorremos um período de avanços socioeconômicos, com o
funcionamento do Estado Democrático de Direito e as devidas correções de rumos
e penalizações de desvios, por exemplo.
Entre as conquistas, podemos citar a criação do Sistema
Único de Saúde (SUS), a universalização do acesso à educação básica, a
derrocada do flagelo da inflação e a criação do Real, a ocorrência de eleições
periódicas e transparentes, com alternância de poder, os avanços nas agendas
dos direitos humanos, do meio ambiente e da sustentabilidade, e uma abrangente
rede de proteção social (Bolsa Família e outros).
Enfim, ainda que lidando com desafios gigantescos e mal
administrando uma impositiva agenda de reformas estruturantes, mas
incrementando nossa incipiente experiência democrática, o Brasil tornava-se
pouco a pouco um país que jamais tinha sido, em seus mais de 500 anos de
História.
Há uma agenda de ajustes? Sim! Pelo nível de suas entregas,
temos uma estrutura governamental cara e ineficiente, além de atravessada por
vícios de corrupção e assaltada por corporações cercadas de privilégios. Temos
um País inaceitavelmente injusto, inseguro e desigual. A educação precisa se
qualificar e se tornar contemporânea. A produção deve incrementar a
sustentabilidade de seus processos, além de ampliar sua produtividade e
competitividade. As instituições precisam se digitalizar, promovendo o
reencontro do modus operandi governativo com o modus vivendi da sociedade.
É patente que, em função dessa realidade, agravada por
ampliações de privilégios de grupo nas áreas pública e privada, recessão
econômica e escândalos de corrupção, há uma insatisfação crescente da
sociedade. Mas não há atalho para superarmos os desafios, especialmente atalhos
à via democrática. O conserto disso tudo não é substituir a democracia pelo
autoritarismo. Até porque os diversos períodos ditatoriais por que passamos não
resolveram problemas históricos e quase sempre os agravaram.
A democracia não é um regime pronto e acabado, nem perfeito,
mas é o melhor já produzido pela humanidade para organizar o exercício do poder
em sociedades livres, igualitárias e fraternas. Como bem resumiu Winston
Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que
foram tentadas”.
Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão
institucionalizada, abrindo espaço a toda sorte de violências, perversões e
injustiças que se alastram no submundo da ação política articulada em torno do
obscurantismo e da deslegitimação da vontade e do poder do povo.
Como disse recentemente o ministro Luís Roberto Barroso, a
“democracia não é o regime político do consenso, mas aquele em que o dissenso é
legítimo, civilizado e absorvido institucionalmente”. E, neste tempo em que
tanto necessitamos de lucidez, recomendou: “Precisamos de denominadores comuns
e patrióticos. Pontes, e não muros. Diálogo, em vez de confronto. Razão pública
no lugar das paixões extremadas. (…) Precisamos armar o povo com educação,
cultura e ciência”.
Que a sociedade, a partir do entendimento e mobilização de
todas as suas forças vivas, sustente a democracia como um valor central ao
Brasil. Que sejamos capazes de superar este tempo excepcionalmente difícil como
uma nação livre e plural e, assim, apta a transformar em plena realidade as
nossas potencialidades de justiça social e prosperidade compartilhada.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
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