Em janeiro de 2019 Jair Messias Bolsonaro subiu a rampa do
Palácio Planalto convencido de que seus eleitores lhe haviam outorgado um
mandato para fazer o que bem entendesse. É um fato comum no sistema
presidencialista de governo.
O eleito tende a pensar que dezenas de milhões de eleitores
compareceram às urnas com um único pensamento. Sabiam exatamente os objetivos
que o candidato de sua preferência deveria perseguir, e por que deveriam
fazê-lo. Uma parte deles por certo se lembrava de que, na democracia, o poder é
exercido dentro de limites estipulados na Constituição e nas leis, e também
pela existência do “outro”, ou seja, dos adversários, que foram derrotados, mas
não deixaram de existir.
Embora típico do sistema presidencialista, no caso de
Bolsonaro o sentimento de onipotência a que acima me referi apresenta riscos
adicionais de suma importância.
Primeiro, ele vê aquela enorme massa de votos como a voz do
“povo” – de todos os brasileiros – e a escolha dele entre os diversos candidatos
como um reconhecimento dos méritos que supostamente possui. Ora, ninguém ignora
que a maior parte de sua votação se deveu à rejeição generalizada ao PT e ao
desastroso legado dos governos petistas; e, complementarmente, ao péssimo
desempenho dos partidos de centro, que não conseguiram se unir em torno de uma
candidatura e de símbolos apropriados ao tenso momento sob o qual o Brasil tem
vivido já há vários anos.
Uma pequena parcela do eleitorado intuiu que o candidato
pretendia fazer reformas. Designado com antecedência, Paulo Guedes sinalizava
uma orientação liberal na economia, e ele mesmo, Bolsonaro, falava em acabar
com a “velha política”, expressão tão vaga como o “contra tudo o que aí está”
dos primórdios do PT. A cereja do bolo – quero dizer, a parte mais esdrúxula do
imaginário mandato bolsonarista – ficou a cargo do sábio da Virgínia. Seria o
combate a um moinho de vento por ele denominado “marxismo cultural”.
Mas os riscos embutidos na visão política de Bolsonaro vão
muito além dos que acima tentei alinhavar. Mais grave, ao que tudo indica, é o
fato de tal visão existir muito mais no campo da psicologia que no do
raciocínio.
Parco em letras, Bolsonaro parece travar uma luta diária
contra os limites que o sistema político lhe impõe e seu fígado, que o estimula
a derrubá-los. Desconhece por completo o significado e o alcance da expressão
“liturgia do cargo”. Não compreende que, uma vez investido na suprema
magistratura do País, ele não mais se pertence.
Sua propensão a demonstrar “franqueza” tem muito de
infantil. Como chefe de Estado, ele deve se comportar com moderação e
comedimento, abstendo-se de recorrer a termos inadequados à posição que ocupa e
de insultar integrantes dos outros Poderes e jornalistas.
Esse perfil assaz telegráfico que estou tentando traçar
indica que o presidente tem uma indisfarçável inclinação autoritária,
ditatorial, mas isso ainda é dizer pouco. Não por acaso, o último rumor que nos
devia atormentar – a iminência de alguma aventura golpista – passou a
frequentar diariamente as páginas dos jornais.
Do fígado, que ele a duras penas tenta controlar, vez por
outra emergem traços francamente paranoicos, notadamente a percepção de que
decisões ou pronunciamentos contrários a seus desejos são indícios de alguma
conspiração. Vale dizer, da perfídia de inimigos empenhados em apeá-lo do
poder.
A controvérsia sobre o artigo 142 da Constituição, que
supostamente confere às Forças Armadas a faculdade de intervir como um poder
moderador na eventualidade de conflito entre os Poderes, deu à conjuntura o
toque pitoresco que talvez lhe faltasse. O que se pode sensatamente afirmar,
especialmente em relação ao Exército, é que sua excessiva presença no governo
empresta uma aura de veracidade a essa tolice, com grave prejuízo para sua
imagem institucional.
Salta aos olhos que a chegada da covid-19 – bem como a
atribuição, pelo Supremo Tribunal Federal, da responsabilidade primária pelo
combate à epidemia aos Estados e municípios – elevou os riscos precedentemente
mencionados à enésima potência. Ignorando e contrariando – exatamente como fez
Donald Trump, nos Estados Unidos – o diagnóstico elaborado pelos serviços de
inteligência, Bolsonaro retardou o sentimento de urgência que se impunha. E
levou-o a solapar tais esforços, descumprindo deliberada e ostensivamente as
recomendações adotadas não só no Brasil, mas em quase todo o mundo.
É triste ver comportar-se dessa forma um presidente que
deveria contribuir para o desarmamento dos espíritos e para a eficácia do
atendimento aos doentes. Um homem corajoso, ex-atleta, não se deixaria
intimidar por uma “gripezinha”.
Uma palavra de preocupação ou compaixão pelas famílias
enlutadas não parece compatível com tal perfil. Pena não ter ele até agora
demonstrado sua coragem, passando um dia num hospital e colaborando, quem sabe,
em tarefas que não requerem conhecimentos específicos de saúde.
*Sócio-diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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