A interpretação bolsonarista de que as Forças Armadas têm a
função de intervir como Poder Moderador diante de um conflito entre o Executivo
e os demais Poderes da República, Legislativo e Judiciário, de acordo com o
artigo 142 da Constituição, não tem base jurídica, como ressaltou o parecer da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgado ontem.
Significaria “que qualquer conflito entre os Poderes estaria
submetido à autoridade suprema do Presidente da República, pois mediado pelas
Forças Armadas, que desempenham suas atividades sob seu comando. E essa
interpretação, ao estabelecer hierarquia entre os Poderes, traria importantes e
graves riscos para o princípio da supremacia constitucional”.
Essa má interpretação constitucional foi exatamente o que os
constituintes de 1988 quiseram evitar, e tiveram muito trabalho para superar os
obstáculos colocados no caminho da definição do papel das Forças Armadas.
Os militares, tendo à frente o ministro do Exército Leonidas
Pires Gonçalves, pressionaram muito para que os termos da Constituição de 1946,
repetidos na de 1967, permanecessem: “Art. 177: Destinam-se as FA a defender a
pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.
Os constituintes viam nessa Redacao, embora tradicional, a
aceitação de que caberia às Forças Armadas a decisão de quando agir. Queriam
que essa possibilidade implícita de intervenção das Forças Armadas fosse
descartada, propondo o que acabou prevalecendo sobre a destinação das Forças
Armadas: “Art. 142: (…) (FA destinam-se) à garantia dos poderes constitucionais
e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
A definição de que a ação das Forças Armadas dependeria da
iniciativa de qualquer dos Poderes foi o pomo de discórdia, e houve várias
negociações em torno do artigo 142. O então presidente José Sarney lembra-se de
que demorou muito tempo para se chegar ao texto final, que não agradou
totalmente aos militares.
Segundo Sarney, o então deputado federal Bernardo Cabral,
relator da Constituinte, havia prometido aos militares manter o texto de 1967,
mas não pôde cumprir o compromisso, o que gerou uma crise política.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que na ocasião
era senador, relata que teve que ir a reunião tensa no Palácio do Planalto
junto com o senador José Richa, para tentar superar o impasse.
O presidente José Sarney estava preocupado com o ministro do
Exército Leônidas Pires, irritado com o não cumprimento do acordo, e coube a
Richa apaziguar os ânimos. Mas os militares não aceitaram as modificações e, é
Sarney quem conta, convocaram Bernardo Cabral para uma reunião no gabinete de
Leônidas no Quartel-General do Exército, no Forte Apache em Brasília.
Os ministros da Marinha e da Aeronáutica também estavam
presentes. Mesmo com o texto da nova Constituição já praticamente na gráfica,
eles insistiam em manter a definição da Constituição de 1967, do regime
militar. O então deputado Nelson Jobim, que teve papel importante na redação
final da Constituição, diz que a questão básica era que os militares queriam
ser eles os definidores de quando poderiam atuar “em defesa da lei e da ordem”.
Bernardo Cabral garante que em nenhum momento foi pressionado pelo General
Leônidas Pires Gonçalves.
Essa interpretação é a que hoje defende o jurista Ives
Gandra Martins , que considera que uma das funções das Forças Armadas seria
atuar como Poder Moderador sempre que um Poder sentir-se atropelado por outro,
uma intervenção pontual e específica.
O documento divulgado ontem pela OAB destaca que “compreender que as Forças Armadas, inseridas inequivocamente na estrutura do Poder Executivo sob o comando do Presidente da República, poderiam intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário para a preservação das competências constitucionais estaria em evidente incompatibilidade com o art. 2o, da Constituição Federal, que dispõe sobre a separação dos poderes. Afinal, com isso, estabelecer-se-ia uma hierarquia implícita entre o Poder Executivo e os demais Poderes quando da existência de conflitos referentes a suas esferas de atribuições”.
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