Com o fim
da ditadura (eleição indireta de Tancredo e Sarney em 1985 e
promulgação da Constituição em 1988), foi delineado o conceito de “entulho
autoritário” para designar o conjunto de normas que permaneceu em vigor
assombrando as liberdades no Brasil.
A incompatibilidade da Lei
de Imprensa de 1967 com a Carta de 1988 só seria declarada em 2009:
mais de 20 anos de atraso.
A Lei
de Segurança Nacional editada pelo general Figueiredo em 1983 (mais
suave que a LSN do general Geisel, de 1978, que, por sua vez, já era mais
branda que a LSN de 1969) ainda está em vigor. O Congresso não foi capaz de
aprovar um marco legal destinado à proteção do regime democrático.
Leis de segurança nacional são inspiradas na Guerra
Fria, na “guerra psicológica adversa”, estão fora de moda, mas a de
Figueiredo voltou a ser notícia. O Supremo Tribunal Federal tem reivindicado
sua aplicação no inquietante caso das fake news. A Polícia Federal instaurou
inquérito para investigar pronunciamento de Lula ofensivo a Bolsonaro. O
ministro da Justiça, por conta da suástica de Hitler, desenhada pelo Bolsonaro
desenfreado, determinou o enquadramento policial do chargista.
A proteção da honra presidencial pela LSN é resquício de uma
época em que o governante era intangível. Não faz sentido. O Estado não é ele.
O Estado são as instituições. Os governantes passam e alguns estão destinados
ao lixo da história. O Brasil já decretou o impeachment de dois Presidentes da
República que perderam a capacidade de governar: o insulto
a Bolsonaro ou a qualquer chefe de Poder é parte compreensível da
convivência democrática.
É curioso retroceder no tempo e observar a carreira de
Bolsonaro sob a ótica da Segurança Nacional. Entre outros atos de indisciplina,
como mostra o livro do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho (“O cadete e o
capitão”, Editora Todavia, 2019), foi acusado de planejar a explosão de bombas
em Agulhas Negras.
Bolsonaro poderia ter sido enquadrado na LSN da época (a
mesma de hoje), com pena de reclusão de três a dez anos para a prática de
sabotagem contra instalações militares e previsão de punição dos “atos
preparatórios”. A LSN de Geisel previa 4 a 15 anos de cadeia.
O ensaio terrorista do jovem Bolsonaro ocorreu depois da
abertura política e o Superior Tribunal Militar deu um jeitinho de decretar sua
absolvição em 1988.
Mas se o delito tivesse acontecido no auge do regime
militar, que ele tanto enaltece, o enredo seria diferente.
Culpado ou inocente, não importa, Bolsonaro teria
experimentado a dor do pau de arara ou da cadeira de dragão e, certamente, não
daria hoje tratamento de herói nacional a torturadores assassinos.
Se a LSN é inútil para a proteção da honra do presidente,
não há impedimento técnico para considerá-lo um potencial infrator.
A lei prevê punição de crimes que “lesam ou expõem a perigo
de lesão” o regime “representativo e democrático” e o “Estado de Direito.”
Jair
Bolsonaro tem sistematicamente incitado à “subversão da ordem
política” e tem, sorrateiramente, estimulado a formação de grupos paramilitares
para ataques ao Legislativo e ao STF.
O recolhimento circunstancial e intimidado de Bolsonaro nas
últimas duas semanas, por conta da prisão de alguns de seus seguidores e pelo
cerco judicial à corrupção familiar, é puro disfarce. Não faz desaparecer os
“atos subversivos” que tem colecionado desde a posse presidencial.
Luís Francisco Carvalho Filho
Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).
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