sábado, 27 de junho de 2020

O PRESIDENTE E O TERRORISTA

Luís Francisco Carvalho Filho, Folha de S.Paulo

Com o fim da ditadura (eleição indireta de Tancredo e Sarney em 1985 e promulgação da Constituição em 1988), foi delineado o conceito de “entulho autoritário” para designar o conjunto de normas que permaneceu em vigor assombrando as liberdades no Brasil.

A incompatibilidade da Lei de Imprensa de 1967 com a Carta de 1988 só seria declarada em 2009: mais de 20 anos de atraso.

Lei de Segurança Nacional editada pelo general Figueiredo em 1983 (mais suave que a LSN do general Geisel, de 1978, que, por sua vez, já era mais branda que a LSN de 1969) ainda está em vigor. O Congresso não foi capaz de aprovar um marco legal destinado à proteção do regime democrático.

Leis de segurança nacional são inspiradas na Guerra Fria, na “guerra psicológica adversa”, estão fora de moda, mas a de Figueiredo voltou a ser notícia. O Supremo Tribunal Federal tem reivindicado sua aplicação no inquietante caso das fake news. A Polícia Federal instaurou inquérito para investigar pronunciamento de Lula ofensivo a Bolsonaro. O ministro da Justiça, por conta da suástica de Hitler, desenhada pelo Bolsonaro desenfreado, determinou o enquadramento policial do chargista.

A proteção da honra presidencial pela LSN é resquício de uma época em que o governante era intangível. Não faz sentido. O Estado não é ele. O Estado são as instituições. Os governantes passam e alguns estão destinados ao lixo da história. O Brasil já decretou o impeachment de dois Presidentes da República que perderam a capacidade de governar: o insulto a Bolsonaro ou a qualquer chefe de Poder é parte compreensível da convivência democrática.

É curioso retroceder no tempo e observar a carreira de Bolsonaro sob a ótica da Segurança Nacional. Entre outros atos de indisciplina, como mostra o livro do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho (“O cadete e o capitão”, Editora Todavia, 2019), foi acusado de planejar a explosão de bombas em Agulhas Negras.

Bolsonaro poderia ter sido enquadrado na LSN da época (a mesma de hoje), com pena de reclusão de três a dez anos para a prática de sabotagem contra instalações militares e previsão de punição dos “atos preparatórios”. A LSN de Geisel previa 4 a 15 anos de cadeia.

O ensaio terrorista do jovem Bolsonaro ocorreu depois da abertura política e o Superior Tribunal Militar deu um jeitinho de decretar sua absolvição em 1988.

Mas se o delito tivesse acontecido no auge do regime militar, que ele tanto enaltece, o enredo seria diferente.

Culpado ou inocente, não importa, Bolsonaro teria experimentado a dor do pau de arara ou da cadeira de dragão e, certamente, não daria hoje tratamento de herói nacional a torturadores assassinos.

Se a LSN é inútil para a proteção da honra do presidente, não há impedimento técnico para considerá-lo um potencial infrator.

A lei prevê punição de crimes que “lesam ou expõem a perigo de lesão” o regime “representativo e democrático” e o “Estado de Direito.”

Jair Bolsonaro tem sistematicamente incitado à “subversão da ordem política” e tem, sorrateiramente, estimulado a formação de grupos paramilitares para ataques ao Legislativo e ao STF.

O recolhimento circunstancial e intimidado de Bolsonaro nas últimas duas semanas, por conta da prisão de alguns de seus seguidores e pelo cerco judicial à corrupção familiar, é puro disfarce. Não faz desaparecer os “atos subversivos” que tem colecionado desde a posse presidencial.

Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).

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