Avança no Congresso Nacional um projeto de lei para combater
fake news. Claro que todo mundo é contra a mentira e a favor da verdade, mas
equacionar essa matéria por meio de um diploma legal pode não ser tão simples.
Ao contrário, pode nos desviar para um desfiladeiro traiçoeiro, de caminhos
minados. Basta ver que, enquanto se discute o projeto de lei, a CPMI das Fake
News pega fogo. Em outro prédio ali perto, no Supremo Tribunal Federal (STF), o
inquérito sobre as mesmas fake news, as mesmíssimas, faz a temperatura subir
ainda mais. Agora as investigações chegam perto do tal “gabinete do ódio”, um suposto
órgão semiclandestino que, sob comando de gente próxima ao presidente da
República, espalha calúnias contra desafetos do bolsonarismo.
Nesse ambiente inflamável, o debate do projeto de lei não
flui. O texto não para de sofrer alterações. As votações são adiadas e
remarcadas. Para complicar, tudo está de pernas para o ar – tudo,
principalmente os argumentos. Defensores históricos das liberdades democráticas
são acusados de censores, em mais uma saraivada de ofensas odiosas. Do outro
lado, os milicientos do fascismo animalesco – aqueles mesmos que difamam
artistas, professores, cientistas e jornalistas, os mesmos que idolatram a
ditadura militar, os mesmos que se fantasiam de Ku Klux Klan do cerrado e
carregam tochas em rituais noturnos para pedir o fechamento do STF – invocam
para si a “liberdade de expressão”. Carregam faixas com os dizeres “fake news
não é crime” – como se todo mundo aqui não soubesse que, mais do que crime, são
um verdadeiro festival de tipos penais.
Os milicientos invocam em vão o nome da liberdade para
pleitear impunidade. Querem atentar à vontade contra a República e a
Constituição. Na novilíngua que adotaram, “liberdade” quer dizer impunidade
para eles, assim como a “democracia” deles quer dizer ditadura para todos os
demais.
Com berros irracionais desse tipo, negociar um diploma legal
se converte numa roleta-russa. O processo legislativo pede racionalidade e
prudência. Nenhuma boa decisão brotará da correria. Por isso os mais sensatos
vêm recomendando que, se há alguém bem-intencionado por trás do projeto de lei,
esse alguém deveria conter o passo, dialogar com a universidade e avaliar com
responsabilidade como é que pode funcionar – e se pode funcionar – uma lei
contra a mentira. A matéria pede calma. Se o Direito positivo servisse para
banir as inverdades deste mundo, a Constituição federal poderia resumir-se a um
único artigo, “é proibido mentir”, e tudo estaria resolvido.
Acontece, nós sabemos, que nada estaria resolvido. Um artigo
nesses termos, além de cômico, seria vazio, cairia na ineficácia absoluta. O
que é a mentira? O que é “mentir”? A resposta não cabe dentro dos domínios da
técnica legislativa. Não por acaso, um dos gargalos do projeto das fake news
acabou sendo precisamente a impossibilidade de definir um tipo específico de
mentira: a “desinformação”. O ímpeto legiferante (ou legifobético) não capta o
sentido da palavra “desinformação” e sem captá-lo não consegue caminhar.
A pesquisadora Claire Wardle, líder e fundadora do projeto
First Draft, ajuda-nos a entender essa palavra. Ela sintetizou sete categorias,
apenas sete, e com elas classificou os “conteúdos” que sabotam o conhecimento
dos fatos. No centro de gravidade dessas sete categorias Claire desenhou o
conceito de “desinformação”. A partir do pensamento dela, mas indo um pouco
além, podemos traçar a definição que nos interessa e nos falta: a
“desinformação” constitui uma novíssima modalidade de mentira industrializada
(fabricada em redes complexas de trabalho organizado), envolvendo recursos de
monta e equipamentos ultramodernos, com foco nas redes sociais e com a intenção
(dolo) de violar direitos das outras pessoas para obter vantagens (indevidas)
políticas ou econômicas.
Usurpando as plataformas sociais, a indústria da
desinformação (que inclui as fake news, mas não se resume a elas) tem alcance
incomparavelmente superior ao da imprensa. Essa forma contemporânea de mentira
massiva e poderosa infecta como um vírus os organismos da democracia. A
desinformação industrializada – cada vez mais a serviço quase que exclusivo das
falanges de extrema direita – corrói os meios legítimos de que dispomos para
registrar aquilo que Hannah Arendt definiu como “verdade factual”.
Como se vê, não precisamos de uma resposta definitiva sobre
a natureza da mentira ou da verdade na Filosofia para entender o estrago
causado pela desinformação. Basta-nos entender o valor da verdade dos fatos,
essa pequena forma de verdade cotidiana, simples, que todos percebemos. Onde
vigora a desinformação, a sociedade perde a capacidade coletiva de constatar e
nomear os fatos – e quando essa capacidade se dissolve, a política fica
inviável e a democracia, impossível.
O problema é grave, mas uma lei improvisada não vai
resolvê-lo. Antes de legiferar, deveríamos pensar mais, debater mais, informar
mais.
- Eugênio Bucci é jornalista e professor da Eca-Usp
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