Na ausência de motivos para levarem a efeito a ideia do
golpe, as hostes bolsonaristas recorrem à figura do Poder Moderador. Invocam a
aplicação forçada e torta do artigo 42 da Constituição de 1988.
Poder Moderador existiu, mas na Carta Imperial de 1824, outorgada
por Sua Majestade o imperador dom Pedro I. Dizia o artigo 98: “O Poder
Moderador é a chave de toda organização política e é delegado privativamente ao
Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante, para que,
incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e
harmonia dos poderes políticos”.
Para a regime monárquico era aceitável que ao imperador
coubesse a prerrogativa de velar, ou seja, de fiscalizar a preservação do
equilíbrio e da harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Afinal, a
ele pertencia a chave da organização política. Registre-se, ademais, que Sua
Majestade era pessoa inviolável e sagrada, não se encontrando sujeita “a
responsabilidade alguma”, conforme prescrevia o artigo 99.
Proclamada a República, as coisas deixaram de ser assim. O
presidente da República, chefe do Poder Executivo, não é inviolável ou sagrado.
Responderá, se for o caso, pela prática de crimes de responsabilidade e comuns,
conforme determinam os artigos 85 e 86 da Lei Fundamental.
Há algum tempo registrei que a Constituição de 1988 é a
única, entre oito, que não resultou de golpe militar. Sucedeu à Constituição de
17/10/1969, conhecida como Emenda n.º 1, editada pelos ministros Augusto Hamann
Rademaker Grünewald, da Marinha, Aurélio de Lira Tavares, do Exército, e Márcio
de Souza Melo, da Aeronáutica. Haviam assumido a chefia do governo com a doença
do presidente Costa e Silva. Para fazê-lo afastarem o vice-presidente Pedro
Aleixo, seu sucessor natural de conformidade com o artigo 79 da Constituição de
1967. A História aí está para não nos esquecermos.
O dr. Tancredo Neves foi eleito em 5/1/1985, pela pressão
popular. O colégio eleitoral apenas ratificou a vontade do povo, cansado de
duas décadas de autoritarismo. Unida em torno dos partidos de oposição, a Nação
reivindicava, em grandes manifestações públicas e pacíficas, o restabelecimento
das eleições diretas e a restauração do Estado Democrático de Direito.
A doença que vitimou o dr. Tancredo quase pôs tudo a perder.
Na noite de 14 de março, ao ser divulgada a notícia da internação no Hospital
de Base começaram a circular em Brasília boatos de intervenção militar para
impedir a posse de José Sarney. A rápida interferência do general Leônidas
Pires Gonçalves, futuro ministro do Exército, teria assegurado ao
vice-presidente o exercício interino da Presidência até a morte de Tancredo, em
21 de abril.
A Constituição de 1988 não é produto de crise ou de golpe
militar. Resultou de Assembleia Nacional Constituinte, convocada e eleita como
compromisso da campanha pela redemocratização. Tem defeitos. O maior, talvez,
decorrente de irrefreável prolixidade.
Contém, entretanto, os instrumentos necessários à defesa do
regime democrático. Às Forças Armadas – constituídas pela Marinha, pelo
Exército e pela Aeronáutica, instituições nacionais permanentes e regulares,
organizadas com base na disciplina e na hierarquia, sob a autoridade suprema do
presidente da República – incumbe a defesa da Pátria, a garantia dos Poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, a defesa da lei e da
ordem. A Constituição não as investe do Poder Moderador. Não são elas “a chave
de toda a organização política”. Tampouco lhes compete velar pela manutenção da
independência, do equilíbrio e da harmonia dos demais Poderes políticos,
prerrogativa dos imperadores.
Para preservar ou prontamente restabelecer, em locais
restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave
e iminente instabilidade institucional, ou atingidas por calamidades de grandes
proporções da natureza, o presidente da República pode se valer da decretação
do estado de defesa. Nos casos de comoção nacional ou de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou de declaração de estado
de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, tem ao seu dispor o estado
de sítio. No primeiro caso, o decreto deverá ser submetido de imediato ao
Congresso Nacional, para validá-lo ou não. No segundo, o Congresso deverá ser
consultado antes (artigos 136/141 da Constituição).
Em ambas as situações, para preservação do Estado
Democrático de Direito o Congresso Nacional permanecerá em atividade, sendo
assegurada a divulgação dos pronunciamentos dos parlamentares nas
correspondentes Casas Legislativas, desde que liberados pelas respectivas Mesas
Diretoras. Pelas mesmas razões, o estado de defesa e o estado de sítio não
impedirão o acesso à tutela do Poder Judiciário.
Conferir às Forças Armadas o exercício de Poder Moderador,
instituto estranho ao arcabouço constitucional, significa abrir largas portas
ao arbítrio.
*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘A falsa República’
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