Não é nada fácil ser moderado quando se é Jair Bolsonaro.
Para quem fez carreira política na base da ofensa explícita a adversários e ao
decoro, interpretar um personagem discreto e ponderado como o que o presidente
incorporou nas últimas semanas deve demandar um esforço quase sobre-humano. Mas
a natureza, cedo ou tarde, se manifesta, e o presidente Bolsonaro voltou a ser
quem sempre foi, ao dizer a um jornalista, no domingo passado, que estava com
“vontade de encher a tua boca com uma porrada”. Tudo porque o repórter lhe
havia feito uma pergunta incômoda.
Que pergunta foi essa, afinal, que causou reação tão
truculenta de um presidente que, conforme a crônica política de Brasília, havia
se metamorfoseado em democrata de uns dias para cá? O repórter, do jornal O
Globo, perguntara a Bolsonaro que explicação ele tinha para os depósitos de R$
89 mil em cheques na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, feitos por
Fabrício Queiroz e pela mulher deste, Marta Aguiar.
Fabrício Queiroz, como se sabe, é o pivô do escândalo da
“rachadinha”. Conforme investigações do Ministério Público que abrangem fatos
de 2007 a 2018, funcionários do gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro,
filho do presidente e na época deputado estadual no Rio de Janeiro, devolviam
parte do salário que recebiam. Quem recolhia o dinheiro era Fabrício Queiroz,
também assessor de Flávio Bolsonaro e amigo de décadas da família do
presidente.
“Rachadinha” é o nome que a literatura do baixo clero
político deu à prática de alguns parlamentares de apropriar-se do salário de
servidores comissionados, em geral gente que raramente comparece ao trabalho –
os chamados “fantasmas”. Além de sua flagrante imoralidade, tal conduta
caracteriza uma série de infrações, tais como peculato, concussão e improbidade
administrativa.
No caso específico de Fabrício Queiroz – que está em prisão
preventiva por conta do escândalo –, já se sabe que esse prestimoso assessor
dos Bolsonaros pagou contas, fez depósitos e movimentou valores consideráveis
em favor da família presidencial. Para o Ministério Público, há razões para
crer que se trata de esquema de lavagem de dinheiro.
Uma dessas movimentações suspeitas teve como destinatária a
hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro. Segundo as investigações, Fabrício
Queiroz e sua mulher, Marta Aguiar, depositaram na conta de Michelle vários
cheques, com valores entre R$ 2 mil e R$ 3 mil, totalizando R$ 89 mil. Foi essa
movimentação que atiçou a curiosidade do repórter que irritou Bolsonaro:
afinal, por que Michelle Bolsonaro recebeu esses cheques de um suspeito de
lavagem de dinheiro?
Sempre que trata do assunto, o presidente se aborrece. Como
“explicação”, já disse que se tratava do pagamento de um empréstimo feito por
ele a Queiroz, no valor de R$ 40 mil, e que coube à primeira-dama descontar os
cheques porque não tinha tempo de ir ao banco. No final do ano passado, quando
questionado por um repórter se tinha algum comprovante do tal empréstimo a
Queiroz, Bolsonaro respondeu: “Ô rapaz, pergunta pra tua mãe o comprovante que
ela deu pro teu pai, tá certo?”.
O presidente Bolsonaro, por menos que goste, deve
explicações ao País a respeito desse estranho caso. As que deu até agora foram
insuficientes – para não dizer ofensivas à inteligência alheia. Em primeiro
lugar, já se sabe que não há qualquer registro bancário do generoso empréstimo
que Bolsonaro diz ter feito a Queiroz. E em segundo lugar o valor da
“devolução” do suposto empréstimo bateu em quase R$ 90 mil, bem acima dos R$ 40
mil informados pelo presidente.
Bolsonaro escolheu ofender os repórteres que o questionam a
respeito desses negócios esquisitos – ainda ontem, voltou a atacar jornalistas,
chamando-os de “bundões” (covardes, no dialeto dos valentões). Se tivesse uma
boa explicação, o presidente certamente já a teria dado, sem recorrer à
selvageria. Como aparentemente não tem, faz o que sabe fazer melhor: parte para
a intimidação. É inútil, pois a pergunta incômoda continuará a ser feita, até
que haja uma resposta convincente – dada ou pelo presidente ou pela Justiça.
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