Durou 67 dias a trégua de Jair Bolsonaro com os outros Poderes
e as instituições democráticas. O presidente moderou os ataques como estratégia
de sobrevivência após a prisão de Fabrício Queiroz, em 18 de junho. Isso
projetou uma imagem mais favorável do mandatário, que conseguiu, além disso,
ampliar sua popularidade com o auxílio emergencial de R$ 600. Essa conversão à
moderação não significou, no entanto, uma nova visão institucional do cargo ou
uma fase inédita de respeito à democracia. Como se viu pelas suas últimas
declarações, Bolsonaro ainda não compreendeu os limites constitucionais do seu
cargo, nem o papel da imprensa.
Ao ser indagado sobre os depósitos do seu amigo na conta da
primeira-dama Michelle Bolsonaro, o presidente perdeu a compostura no domingo,
23, durante visita à Catedral Metropolitana de Brasília. Disse ao repórter do
jornal O Globo que tinha “vontade de encher sua boca de porrada”. Os depósitos
somam R$ 89 mil. Queiroz é o operador do esquema de rachadinha no antigo
gabinete do filho 01 na Assembleia Legislativa fluminense, segundo o Ministério
Público do Rio de Janeiro (MP-RJ). Antes da posse, o presidente declarou que
recebeu algumas parcelas do ex-PM, ligado às milícias cariocas, para quitar um
empréstimo de R$ 40 mil. Agora, já se provou que os valores não batem. A
movimentação supera o dobro desse valor. Além disso, o MP-RJ aponta depósitos
feitos também por Márcia de Aguiar, mulher de Queiroz. O ministro Celso de
Mello, do STF, criticou a declaração. “A grosseria de qualquer presidente da
República revela perigoso desapreço e claro desrespeito pela liberdade de
informação e de imprensa”, disse. “É inadmissível censurar jornalistas pelo
mero descontentamento com o conteúdo veiculado”, emendou seu colega de corte,
Gilmar Mendes. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou o rompante e
disse esperar que o presidente “retome a postura mais moderada que vinha
mantendo”.
Além da ameaça ao trabalho da imprensa, a fala de Bolsonaro
levanta uma questão de fundo. O presidente tinha cessado as ameaças ao STF,
muitas vezes operadas por seuseus extremistas seguidores. A cooptação do
Centrão também sinalizava a busca por uma relação mais produtiva com o
Congresso, ainda que aberta à reedição de esquemas corruptos. A estratégia conciliadora,
como se viu, pode ser abandonada a qualquer momento, à medida que os inquéritos
que ameaçam o clã Bolsonaro se aprofundem. Atualmente, o alcance do esquema da
rachadinha originado no gabinete de Flávio Bolsonaro já adquiriu uma nova
dimensão que engolfa o clã presidencial em uma nuvem de suspeições. O advogado
Frederik Wassef, que escondeu Queiroz até a prisão, está envolvido em nebulosas
negociações com a Procuradoria-Geral da República, a pedido do presidente, para
interceder pela JBS. Há suspeita da ligação de Wassef com o favorecimento para
empresas que têm contratos milionários com o governo (leia mais à pág. 32).
Tudo isso desestabiliza o mandatário e mostra que sua nova fase é de um
equilíbrio frágil, instável. Os depósitos na conta da primeira-dama podem
significar para Bolsonaro o que o Fiat Elba representou para Fernando Collor,
ou o tríplex no Guarujá para o ex-presidente Lula. A prova cabal de vínculos
com esquemas criminosos. São dúvidas assim que desestabilizam governos
construídos sobre bases falsas e corruptas.
Depois de agredir o repórter que o inquiria sobre os
cheques, Bolsonaro dobrou a aposta e chamou os jornalistas de “bundões” no
evento “Brasil vencendo a Covid-19”, no Palácio do Planalto, no dia seguinte —
deixando de mencionar os 120 mil brasileiros que já tombaram com o coronavírus.
Em visita a Ipatinga (MG), na quarta-feira, 26, voltou a se irritar com a
pergunta sobre os cheques depositados na conta de Michelle. Exaltado, por três
vezes chamou um jornalista de “otário”. Esse comportamento não apenas reafirma
o desprezo pela liberdade de imprensa. É combustível para ataques aos
jornalistas, a exemplo do que ocorre em ditaduras. Não se trata de explosões
bizarras de um político rude e inculto. Fazem parte de um projeto autoritário
que deseja calar a sociedade. Na Venezuela, paramilitares a soldo oficial
perseguem e torturam os profissionais de imprensa. Aqui, o trabalho é feito por
milícias virtuais, incluindo as ações coordenadas pelo “gabinete do ódio”,
instalado no Palácio do Planalto. O temor, inclusive no exterior, é que os
arroubos do presidente levem seus seguidores a tomar ações concretas contra
jornalistas, colocando o Brasil definitivamente na lista de Nações que
constrangem a liberdade de imprensa. Isso isola o País na comunidade
internacional e ameaça acordos costurados há anos pela diplomacia brasileira,
como a integração à OCDE e o acordo Mercosul-União Europeia. Nesse último
episódio, apoiadores do presidente usaram as redes com esse objetivo. “Foi pra
isso que votei nele! Jornalista vagabundo tem que apanhar na rua!”, dizia um
deles. São ações insufladas pelo mandatário desde o início da gestão. No ano
passado, Bolsonaro foi o responsável por 58% dos 208 ataques contra veículos e
profissionais de imprensa no Brasil, segundo a Federação Nacional dos
Jornalistas (FENAJ).
Desta vez, ironicamente, o rompante do presidente se voltou
contra ele nas redes sociais e gerou uma onda de indignação que mobilizou a
internet. Mais de 1 milhão de interações ocorreram no domingo, a partir de 353
mil usuários, com a pergunta: “Presidente @jairbolsonaro, por que sua esposa,
Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”.
Internet contra Bolsonaro
Celebridades aderiram, como a cantora Anitta, o influencer
Felipe Neto, o humorista Fabio Porchat, a atriz Patricia Pillar e o cantor
Caetano Veloso. Mas o grosso veio de manifestações espontâneas de populares. Em
quatro dias, ocorreram 4,3 milhões de interações no Facebook, segundo Fábio
Malini, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da
Universidade Federal do Espírito Santo. Os perfis de Bolsonaro nas principais
plataformas foram invadidos com a mesma pergunta em milhares de comentários,
neutralizando a resposta do presidente. Durante a crise, os apoiadores do
governo tentaram criar uma falsa “narrativa” para o destempero de Bolsonaro.
Segundo essa versão, o jornalista que inquiriu o presidente teria provocado:
“Vamos visitar sua filha na cadeia”. Não é o que ocorreu. A verdadeira frase,
dita por um homem na multidão, foi “Vamos visitar nossa feirinha na catedral,
presidente”. Bolsonaro tentou usar a interpretação alternativa e publicou o
vídeo do incidente, apagando a frase fictícia, mas com um versículo bíblico: “E
conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Em vão. Foi um massacre nas
redes. Para Malini, essa foi a maior crise do presidente na internet,
rivalizando com o episódio do “golden shower”, no carnaval de 2019. “Criou uma
nova forma de lidar com o governo, que é o perguntaço. É uma atividade nata do
repórter. Isso deve ser utilizado outras vezes em situações análogas”, afirmou.
As pessoas descobriram um mecanismo de lidar com um determinado fato, e
criticar o governo por meio de menções diretas nas contas oficiais. Para ele,
essa pergunta pode virar um novo “Cadê o Queiroz?”. “Os bolsonaristas fazem
muito isso, de usar uma pergunta que é compartilhada por várias pessoas.
Sincronizam uma ação de ataque ou defesa. O último alvo forte foi o Moro”, diz
Malini. Para ele, o Twitter era uma bolha polarizante nas eleições de 2018, mas
o viés de oposição ao governo Bolsonaro está ganhando força. O pesquisador
também nota que está se reproduzindo um fenômeno que ocorreu nas últimas
eleições britânicas: a expansão dos movimentos virais gerados a partir de
conteúdos originais da imprensa. “Os conservadores nas últimas eleições no
Reino Unido se beneficiaram disso. É um fenômeno novo”, diz. Assim,
paradoxalmente, o presidente acabou fortalecendo os profissionais que desejava
atacar.
A relação tumultuada com os profissionais de comunicação é
uma constante para o presidente. “Ô rapaz, pergunta pra sua mãe sobre o
comprovante que ela deu pro teu pai, tá certo?”, disse em dezembro, ao ser
indagado também sobre cheques de Queiroz à primeira-dama. “Você tem uma cara de
homossexual terrível, mas nem por isso eu te acuso de ser homossexual”, disse a
outro jornalista. “Tem familiares meus aqui. Eu prefiro vê-los do que responder
uma pergunta idiota para você. Está respondido?”, disse em julho de 2019,
perguntado sobre ter oferecido carona a parentes em helicóptero da FAB. As suas
investidas são parecidas com a exibida em 1983 pelo general Newton Cruz. O
antigo chefe do Comando Militar do Planalto mandou o radialista Honório Dantas
“calar a boca” durante uma entrevista coletiva. Exaltado pelas perguntas
incômodas, agarrou o profissional pelo pescoço, exigindo um pedido de
desculpas. O pendor autoritário do general gerou alguns dos últimos momentos
ameaçadores do regime de exceção que entrava em colapso, mas despertava fãs.
Naquela década, o então tenente Bolsonaro tentou se aproximar de Newton Cruz,
cujos gestos, apesar de teatrais e patéticos, vieram após um período de trevas.
Em 1968, o Ato Institucional nº 5 levou a censura às redações dos jornais,
rádios e TVs, além de abrir o caminho para cassações, prisões e torturas. O
AI-5, é bom lembrar, já foi defendido publicamente por Eduardo Bolsonaro. Na
história do País, esse período obscuro só tem paralelo com a repressão
promovida por Getúlio Vargas no Estado Novo, quando o Departamento de Imprensa
e Propaganda ditava as informações que podiam chegar à sociedade e o jornal O
Estado de S.Paulo sofreu intervenção. Fernando Collor tentou intimidar a Folha
de S.Paulo enviando a Polícia Federal à sede do jornal dez dias após sua posse,
a pretexto de uma investigação fiscal. No momento atual, felizmente não há
espaço para retrocessos institucionais. Bolsonaro flerta com um momento
passado, mas há um consenso estabelecido desde a redemocratização. Os governantes
precisam prestar contas à Justiça e não conseguem mais aviltar a liberdade de
expressão, expressa na Constituição e garantida pelo STF. Ao atual mandatário,
como acontece nas grandes democracias, só resta seguir a lei. Para isso, deve
responder não apenas à imprensa, mas à sociedade: “Presidente, por que sua
esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”.
Quem é bundão?
Antonio Carlos Prado
Jair Bolsonaro, digníssimo presidente do Brasil, precisamos
refletir sobre “bundão”. Desculpem, leitores, a chula expressão, mas aqui temos
de usá-la em nome do constitucional direito que toda a sociedade possui de ser
bem informada. Bolsonaro afirmou, referindo-se à Covid-19: “Quando pega num
bundão de vocês (jornalistas) a chance de sobreviver é bem menor” – ele
comparava repórteres a si próprio, que já foi infectado e sarou. Pois bem, no
estilo populista, Bolsonaro aposta na confusão. Vale esclarecer, então, quem de
fato é “bundão”? Esse termo, impensável na boca de um presidente da República,
significa ser covarde, “amarelar”, fugir das obrigações. Vamos, pois, a um
lógico raciocínio: Presidente, quem é que foge de perguntas sobre o depósito de
dinheiro na conta bancária de sua esposa, a sra. Michelle, feito por Fabrício
Queiroz? Excelência, quem é que constantemente ameaça bater em jornalistas
quando se sente incomodado com indagações? Quem diz a jornalistas se não têm
pergunta melhor a fazer? O senhor é pessoa pública, ganha salário do erário, é
obrigado a acolher a imprensa. Não é favor. Fugir disso, porque tem medo, é ser
covarde. É “amarelar”. “Bundão”. E tentar esconder a covardia com agressividade
é ato ainda mais covarde.
Se Bolsonaro pensa em tolher o artigo 5º da Constituição que
assegura a liberdade de expressão (não a liberdade de governante ter boca
suja), seria bom que ele memorizasse duas frases. Uma: “Posso discordar daquilo
que você diz, mas dou a vida pelo direito de dizê-lo”. É de François Marie
Arouet. A outra: “A liberdade de imprensa não pode ser limitada sem ser
perdida”. É de Thomas Jefferson. Com certeza o presidente já estudou muito
essas personalidades, dá para notar pela sua compostura. Falando-se em
compostura, lembremos que o então presidente João Figueiredo (o general que
preferia o cheiro de cavalo ao de povo) discutiu pessoalmente com
manifestantes. Mas não derrubou o nível. Como disse recentemente o genial
escritor, produtor e crítico musical Nelson Motta: “Não chega a ser o caso de
ter saudade, mas Figueiredo perto de Bolsonaro era um lorde”.
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