No dia 21 de agosto, a Folha publicou
editorial no qual defendia que, se seguir adiante na proposta econômica dos
desenvolvimentistas de seu governo, de elevar déficit e desrespeitar teto de
gastos, Jair Bolsonaro corre o risco de ter resultado parecido ao obtido por
sua antecessora Dilma Rousseff: popularidade momentânea e país quebrado no
médio prazo.
O texto era intitulado “Jair
Rousseff”, uma escolha infeliz que tentava resumir a pertinente comparação
econômica sem levar em conta que colocava na mesma expressão o sobrenome de uma
democrata que foi torturada
pela ditadura militar e o prenome de um político apologista
da tortura, que defende não só aquele regime como suas práticas vis e
sanguinolentas.
Desde então, centenas de leitores e vários colunistas
tiveram seus comentários com críticas ao texto publicados no próprio jornal, em
prática que é pilar do Projeto Folha tal como imaginado por Octavio Frias de
Oliveira (1912-2007) e seus filhos Otavio Frias Filho (1957-2018) e Luiz Frias:
liberdade de expressão, pluralidade de opiniões e abrigo do contraditório.
A ex-presidente teve
a íntegra de seu protesto publicada no jornal. Nelson Barbosa,
ex-ministro da Fazenda de Dilma, escreveu fora de sua coluna o texto “A
Folha da Faria Lima”. Cristina Serra chamou
a fusão dos dois nomes de “ultraje”. Outros colunistas se manifestaram
veementemente, o que valeu definição de Juca Kfouri, intitulada “A
Folha é Assim”:
“Capaz do pecado de um título insultuoso à ex-presidente
Dilma Rousseff [...], esta Folha é capaz, também, de publicar
muito mais críticas que elogios de seus leitores ao deslize. Melhor: mantém
espaço para seus colunistas manifestarem a discordância. E isso tem nome num
país pouco habituado ao contraponto civilizado: liberdade de expressão”.
Janio de Freitas, por sua vez, em
sua coluna mais recente, não apenas discorda do publicado com argumentos,
mas aproveita para fazer acusações infundadas que merecem resposta, algumas
delas a pessoas que infelizmente já não estão mais aqui para se defenderem.
Num texto por vezes labiríntico, o colunista reclama tanto
da preocupação (que chama de “ilusória”) com audiência por parte do jornal,
hoje com leitura recorde em seus quase cem anos, como do pouco espaço que
segundo ele sua coluna tem merecido na Primeira Página.
Mas é ao “romper um tabu”, como escreve, que comete
injustiça: ao dizer que a Folha teria emprestado veículos à
repressão na ditadura, no que chama de “tinta pegajosa e indelével”. A seguir
afirma que nunca houve explicação satisfatória para o suposto episódio.
Não é verdade. Em 2018, meses antes de morrer, Otavio Frias
Filho, então diretor de Redação da Folha, enviou o seguinte texto
para o blog de Fernando Morais:
“Em nota recente que envolvia meu nome, seu blog fez menção
às acusações de que veículos da então Folha da Tarde, pertencente ao Grupo
Folha, teriam sido usados pela repressão à guerrilha no começo dos anos 70.
Em 2011, solicitei que uma pesquisa exaustiva fosse
realizada para esclarecer o episódio. Seus resultados constam do livro ‘Folha
Explica a Folha’ (2012; págs. 49 a 61), da jornalista Ana Estela de
Sousa Pinto.
Não
foram encontrados registros que comprovem essa utilização nem nos
arquivos da ditadura, nem nos jornais clandestinos mantidos pela luta armada na
época. A acusação se baseia no depoimento de dois militantes presos que
afirmaram ter visto veículos do jornal no prédio do DOI-Codi (Vila Mariana,
SP). Os atentados terroristas contra veículos da Folha, praticados
pelo grupo ALN, ocorreram quatro dias depois da morte pela repressão do
guerrilheiro Carlos Lamarca no interior da Bahia, sugerindo que o motivo do
ataque foi a cobertura, bastante hostil, que a Folha da Tarde fez daquele fato.
A Folha sempre afirmou que, se a cessão de
veículos ocorreu, foi de forma episódica e sem conhecimento nem autorização de
sua direção”.
Mais adiante, Janio ressuscita o episódio “ditabranda”,
outro termo infeliz utilizado pelo jornal em editorial de 2009 para dizer que o
regime de exceção brasileiro foi menos mortal que o dos vizinhos argentino e
chileno. Aqui, de novo o colunista defende patrões e culpa colegas, sugerindo
que Otavio Frias Filho guardou silêncio e assumiu responsabilidade alheia.
No entanto, o próprio Otavio escreveu
naquele mesmo ano nas páginas do jornal:
“O uso da expressão [...] foi um erro. O termo tem uma
conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras
são igualmente abomináveis”.
Otavio então reforçava o contexto histórico da comparação e
reprovava a reação de alguns intelectuais, que pediam que os responsáveis pelo
editorial fossem forçados, “de joelhos”, a uma autocrítica em praça pública.
“Para se arvorar em tutores do comportamento democrático
alheio, falta a esses democratas de fachada mostrar que repudiam, com o mesmo
furor inquisitorial, os métodos de ditaduras de esquerda com as quais
simpatizam.” As palavras seguem atuais.
Janio de Freitas é um ícone do jornalismo brasileiro. Suas
reportagens do passado e suas colunas sempre foram referência na cobertura
política, mas nem ele está a salvo de cometer injustiças e incorrer em erros
facilmente evitáveis com um mínimo de apuração prévia.
Sérgio Dávila
Diretor de Redação
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