Argumentei neste espaço quando a pandemia chegou que ela
representava um choque exógeno no sistema político alterando os preços
relativos das questões da agenda pública: os temas que levaram Bolsonaro à
Presidência (segurança pública, corrupção, costumes) seriam eclipsados e o reformismo
fiscal e econômico sairia da pauta. E que as questões
fiscais adquiririam significado inteiramente novo face ao imperativo de
expansão brutal do gasto.
O resultado líquido disso tudo é que “o ativo Guedes” perdeu
valor.
O que efetivamente se seguiu não divergiu do script: a
pandemia inviabilizou a agenda maximalista de Guedes e a
debandada de membros de sua equipe é o melhor sinalizador disso. A janela
de oportunidade para as privatizações foi fechada, pelo menos no curto prazo.
Idem para algumas reformas microeconômicas. Mas ela não é o único fator: os
efeitos do escândalo no clã familiar e a aproximação com o centrão eram
previsíveis e se manifestam agora.
De antídoto anticaos social a sustentáculo da popularidade,
o auxílio emergencial (cujo custo chega a 8,5% do PIB) revelou-se ex post
crucial para a sustentação política do governo. Assim pandemia e escândalo
desfiguraram a agenda Guedes; convertem o czar da economia em Torquemada do
gasto muito além do papel que ministros da Fazenda normalmente cumprem. Sua
agenda tornou-se inteiramente reativa: como o centroavante que decide o jogo
que passa a jogar como zagueiro.
Muitos analistas parecem acreditar que Guedes é —no jargão—
um jogador sincero e não estratégico: ou seja, suas propostas expressariam a
sua preferência, e não um lance em um jogo de barganha de várias rodadas. O
debate sobre o auxílio e a Renda Brasil tem sido marcado por certa ingenuidade
interpretativa: o teatro montado sobre desavenças entre ministro e Executivo
não é crível.
A expansão do gasto e sua sustentabilidade do ponto de vista
dinâmico torna-se assim a questão central. Dois fatores, no entanto, mitigam o
custo reputacional quando governos fazem dívida. O mais importante é que
virtualmente todos os governos estão fazendo o mesmo. Em segundo lugar, ele se
dá sob a batuta de um ministro notoriamente avesso à expansão do gasto. Aqui
observamos o “efeito Nixon goes to China”, pelo qual apenas um anticomunista
raivoso pode se aproximar da China sem demonstrar estar fazendo concessões.
No limite admitindo-se que Guedes permaneça, um eventual
abandono do teto de gastos (via PEC excluindo o Renda Brasil do limite) terá
custos importantes, mas menos desastrosos que ocorreria na ausência daquelas
duas condições. Mesmo como rainha da Inglaterra o Guedes ainda é útil.
Marcus André Melo
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e
ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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