Marco Aurélio Nogueira, O Estado de S.Paulo
Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao
que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas
passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.
São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo
normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um
modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é
continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um
padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas
pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é
para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a
cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar
comum.
Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de
complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o
particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.
O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha
arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional
de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil
mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo
federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como
reagir.
A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa,
evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que
houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus,
especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho
mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de
comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos,
amigos. Têm sido meses angustiantes.
Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um
eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a
crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os
sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento,
ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem
recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro
falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.
A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo
é ingênua. A competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A
Sputnik, russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de
uma “guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021, não há
como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será feita sua
aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a ideia for
imunizar a população terrena. Além disso, o mundo superconectado, frenético e
desigual em que vivemos é propício a novas ondas pandêmicas.
O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e
sacrifícios. Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas,
governos de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade,
que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma vida
com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais tempo em
casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.
Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus
vagões e ônibus que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar,
com suas interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as
amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?
O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco:
segurança ou liberdade. O que tem mais importância e valor? Como voltar a olhar
para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da vida
aberta, sem freios? Como controlar nossos desejos e pulsões, recompô-los e
deixá-los fluir de outro modo? Teremos de experimentar de maneira distinta o
prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?
São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam
o enigma freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de
“mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma
comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de nos
haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da
psicanálise, conhecimento e informação.
A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de
sensações e possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações
éticas e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição,
difícil como qualquer outra.
A educação é o recurso de que dispomos para construir
atitudes cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam
um mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da
escola, mas de educação com E maiúsculo.
Resta saber se venceremos a batalha.
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