Ninguém se iluda com a conduta relativamente branda adotada
pelo presidente Jair Bolsonaro desde que lhe ficou patente, pelo anteparo firme
das instituições democráticas, a impossibilidade da via autoritária. Era
atenuar os modos ou marchar para o impeachment.
O arroubo
de incivilidade lançado no domingo (23) contra repórter do jornal O
Globo indica que a mudança não passa de adaptação epidérmica, resultante momentânea
do choque imposto pela inércia constitucional sobre a atormentada personalidade
presidencial.
“A vontade é encher a tua boca de porrada”, reagiu o
mandatário ao ser indagado sobre os repasses de R$ 89 mil feitos à sua mulher,
Michelle Bolsonaro, por Fabrício Queiroz, investigado sob suspeita de integrar
esquema de distribuição ilegal de recursos públicos no gabinete do então
deputado estadual fluminense Flávio Bolsonaro.
O destampatório anti-imprensa pelo visto rompeu o fim de
semana. Nesta segunda (24), quando promovia mais um folguedo em torno da
hidroxicloroquina, o presidente afirmou que jornalista “só sabe fazer maldade,
usar caneta com maldade” e soltou mais uma provocação com palavra chula.
Talvez a recuperação da popularidade, atestada pela pesquisa
Datafolha, tenha instigado no chefe do governo a ressurgência
daquele comportamento que tem sido reprimido institucionalmente. Seria
uma recidiva fadada ao fracasso.
A imprensa profissional cumpre seu papel quando questiona os
poderosos acerca de temas importantes da agenda pública, ainda que incômodos a
eles. É o caso de saber com que justificativa dinheiro tomado do contribuinte a
título de viabilizar o exercício de um mandato parlamentar foi parar na conta
da hoje primeira-dama.
Já o presidente descumpre o seu dever político quando deixa
de esclarecer o tema. A responsabilidade, que não é nada mais que a obrigação
de dar respostas aos cidadãos, alicerça os pactos sobre os quais se erigiu a
democracia.
Intimidar a imprensa, que faz as perguntas, não muda o
quadro dos deveres presidenciais. Tampouco o altera apelar a normas caducas da
ditadura, como procede o governo ao investir, apoiado na Lei de Segurança
Nacional, contra o colunista Hélio Schwartsman, da Folha.
Prestar contas de seus atos não é uma opção do chefe de
Estado ou de quem quer que exerça função pública. Trata-se de mandamento democrático
que será cumprido cedo ou tarde, de modo colaborativo —que é o mas indicado— ou
não.
Em vez de produzir mais fumaça para desviar a atenção do
caso Queiroz, seria melhor o presidente explicar por que R$ 89 mil em cheques
do famigerado assessor acabaram na conta da primeira-dama.
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