Lira Neto, Aventuras
na História
“SAIO DA VIDA PARA ENTRAR NA HISTÓRIA”: 65 ANOS DO SUICÍDIO
DE GETÚLIO VARGAS
Pelo telefone, claramente emocionado, o ministro da Fazenda,
Oswaldo Aranha, leu para a Rádio Nacional a carta-testamento encontrada na
mesinha de cabeceira do presidente morto: "Eu vos dei a minha vida. Agora
ofereço a minha morte. Nada temo. Serenamente dou o primeiro passo no caminho
da eternidade e saio da vida para entrar na história".
O relógio indicava que faltavam 15 minutos para as 9 da
manhã daquele 24 de agosto de 1954. Nunca o país assistira a tamanha comoção
popular como a que veio logo após a divulgação da notícia: Getúlio Vargas se
matara, em seu quarto, por volta de 8h30, com um tiro no peito.
Multidões saíram às ruas. Enfurecidos, manifestantes
depredaram a sede da Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda, mais
furibundo dos adversários de Getúlio. Uma massa humana de 100 mil pessoas, a
maioria em pranto incontrolável, desfilou diante do caixão do presidente,
velado no antigo Palácio do Catete, no Rio. A imprensa noticiou que cerca de 3
mil pessoas presentes ao velório, vítimas de desmaios, mal-estares, crises
nervosas e problemas de coração, precisaram ser atendidas pelo serviço médico
do palácio.
Na enfermaria, o estoque de calmantes esgotou-se em minutos.
O país inteiro quedou em estado de choque. Ninguém esperava por aquele desfecho
para a crise que se abatera como uma nuvem negra sobre o governo, apesar de o
próprio Getúlio ter dito, dias antes, com todas as letras: "Só morto
sairei do Catete".
A pergunta que se fez à época, e que até hoje ecoa, 65 anos
depois, é uma só: afinal, por qual motivo Getúlio se matou? O que levou o
presidente a puxar o gatilho de seu revólver, após apontá-lo contra o próprio
coração? Que sentimentos insondáveis povoavam o homem Getúlio Vargas no
instante daquele gesto que mudaria a história do Brasil?
Como sempre ocorre, boa parte das possíveis respostas e
certezas morreu junto com o próprio suicida. Mas, reconstituindo os fatos
daquele aziago mês de agosto — mês de desgosto, no imaginário popular
brasileiro —, é possível esclarecer os últimos momentos de Getúlio. Entre as
tantas hipóteses, conjecturas e análises divergentes, uma coisa pelo menos é
certa: o governo Vargas começou a morrer 20 dias antes, alvejado por outro
tiro, este ironicamente disparado contra seu arqui-inimigo Carlos Lacerda.
Entre os dois tiros, um que atingiu o pé esquerdo de
Lacerda, o outro que se alojou no peito de Getúlio, estão as respostas para a
pergunta que não quer calar.
Dias antes
Na madrugada de 5 de agosto, pouco depois da meia-noite,
Carlos Lacerda havia sido vítima de um atentado diante do portão do prédio onde
morava, na rua Toneleros, em Copacabana. Dois disparos atingiram seu
acompanhante, o major da Aeronáutica Rubens Vaz, que não resistiu aos
ferimentos.
Foi impossível não ligar o atentado da Toneleros às críticas
virulentas disparadas diariamente por Lacerda contra o governo pelas páginas da
Tribuna da Imprensa. Com a linguagem destemperada de sempre, Lacerda chegara a
chamar o presidente de monstro, o ex-deputado Lutero Vargas de "ilho rico e
degenerado do Pai dos Pobres e Oswaldo Aranha de mentiroso e ladrão.
Carlos Lacerda escapou, por pouco, do atentado. Naquele
mesmo dia exibiu, em seu jornal, as fotos de um ferimento a bala em seu pé
esquerdo — ferimento cuja veracidade seria contestada depois —. O
prontuário do Hospital Miguel Couto, onde fora atendido, sumiria
misteriosamente. Mas o estrago, àquela altura, já estava feito.
"Acuso um só homem como responsável por esse crime. É o
protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá a audácia para atos como o desta
noite. Esse homem é Getúlio Vargas", escreveu Lacerda. A oposição tinha
agora um cadáver, o do major Vaz, e seu principal representante, antes já
suficientemente feroz, passara a agir a partir de então como um animal ferido.
"Esses tiros me ferem pelas costas", reconheceu
Getúlio. As principais suspeitas recaíram sobre Gregório Fortunato, chefe da
guarda pessoal do presidente. Na manhã do dia 5, Getúlio chamou Gregório e
indagou-lhe se tinha participação no episódio. Ele negou. À tarde, no
Congresso, o líder da maioria, Gustavo Capanema, leu uma declaração assinada
por Vargas: "Até agora considerava Lacerda meu principal inimigo. Mas
agora o considero meu inimigo número 2; o número 1, aquele que causou o maior
prejuízo ao meu governo, foi o homem que atentou contra sua vida".
Contudo, os indícios e as investigações da trama logo
apontaram para os corredores do Palácio do Catete. O fio do novelo começou a
despontar logo no primeiro dia, quando um motorista de táxi que trabalhava
próximo ao palácio apresentou-se voluntariamente à polícia e afirmou que
levara, na noite anterior, um membro da guarda presidencial, Climério de
Almeida, ao local do crime.
Manifestações de protesto civis e militares pipocavam na
capital federal, deixando o governo cada vez mais acuado. Cerca de 5 mil
pessoas compareceram ao enterro de Vaz, enquanto Climério, em vez de prestar
esclarecimentos, tratou de desaparecer do mapa.
Ira dos adversários
No dia 8, com as acusações desabando sobre sua mesa de
trabalho, Getúlio resolveu dissolver a guarda pessoal e franquear as
dependências do Catete para as investigações. Tal atitude não satisfez a ira
dos adversários. No Congresso, deputados da conservadora UDN (União Democrática
Nacional), agrupados na chamada Banda de Música — assim conhecida pelo
barulho que provocava em plenário com seus discursos inflamados e orquestrados
—, passaram a exigir a renúncia de Vargas.
Da Aeronáutica, a crise logo se alastraria para as demais
corporações armadas. Durante todo o seu governo, Getúlio enfrentara a oposição
dos militares, especialmente após ter nomeado, João Goulart, o Jango, no cargo
de ministro do Trabalho. Jango, considerado pelos quartéis um notório
esquerdista, propôs um aumento de 100% no salário mínimo e acabou derrubado do cargo,
por pressão dos militares.
A saída de Goulart do governo não afastara a desconfiança
dos quartéis ou das forças políticas e econômicas mais conservadoras, que
diagnosticavam no nacionalismo de Vargas uma perigosa guinada à esquerda.
Assim, naqueles dias tormentosos de agosto, as forças civis e militares
insatisfeitas com os rumos do governo vislumbraram a ocasião propícia para
afastar, de uma vez por todas, Getúlio do poder.
Fazendo coro à Banda de Música udenista, membros do Alto
Comando das Forças Armadas decidiram bombardear a resistência do presidente. No
dia 12, data da missa de sétimo dia do major Vaz na Candelária, foi instaurado
na Base Aérea do Galeão um inquérito policial-militar, um IPM, sob o comando do
coronel Adil de Oliveira. Apelidado de República do Galeão, o IPM deteve
suspeitos, convocou testemunhas e, em poucos dias, selaria o destino do
presidente.
Enquanto o IPM era instalado e o comércio do centro do Rio
fechava as portas para celebrar o luto pelo major Vaz, Getúlio decidiu viajar
para Minas Gerais, onde foi recebido com pompa e circunstância pelo governador
Juscelino Kubitschek. Na inauguração de uma siderúrgica em território mineiro,
faria seu último e contundente discurso: "Advirto aos eternos fomentadores
da provocação e da desordem que saberei resistir", disse o presidente ao
microfone, emocionado.
No dia seguinte, de volta ao Rio, encontrou o cenário ainda
mais turbulento. Um pistoleiro, Alcino do Nascimento, havia sido preso e
confessara ter atirado contra Lacerda por encomenda de Climério, ainda
foragido. Mas o pior ainda estava por vir: pelo depoimento de Alcino, as
suspeitas da autoria intelectual do atentado recaíam agora sobre Lutero Vargas,
ninguém menos do que o filho do presidente.
Lutero, por recomendação expressa de Getúlio, apresentou-se
espontaneamente ao IPM e renunciou à sua imunidade parlamentar, pondo-se à
disposição das investigações. "Estou sendo vítima de uma torpe
difamação", diria ele ao país, por meio de uma rede oficial de emissoras
de rádio. Mas, nos dias seguintes, uma sucessão de acontecimentos abalaria
ainda mais as estruturas do Catete.
Em 16 de agosto, com a tropa fora de controle, o ministro da
Aeronáutica Nero Moura pediu demissão. No dia 18, Climério foi preso e
confessou ter recebido ordens de Gregório Fortunato, cuja prisão já havia sido
determinada pelo IPM no dia 15.
Diferentes culpados
Há quem afirme que Fortunato, após sustentar outras versões,
acabou assumindo a culpa pelo atentado contra Lacerda para proteger aquele que
seria o verdadeiro culpado do crime, Benjamin Vargas, o Bejo, irmão caçula de
Getúlio. O jornalista José Louzeiro, por exemplo, foi um que defendeu a
hipótese em seu livro O Anjo da Fidelidade: A História Sincera de Gregório
Fortunato.
Segundo seu biógrafo John W.F. Dulles, Lacerda também tinha
a firme convicção de que Bejo seria o mandante do crime. Seja como for, outras
revelações do IPM, levadas a público no dia 18 de agosto, apontariam novas e
suspeitas ligações de Fortunato com familiares do presidente.
De acordo com documentos apreendidos no porão do Catete, no
arquivo pessoal de Fortunato, o filho mais novo de Getúlio, Manoel Antônio Vargas,
o Maneco, vendera ao Anjo Negro uma fazenda por 3 milhões de cruzeiros "
quando o salário de Fortunato não passava de 15 mil cruzeiros mensais. Era a
gota d´água. "Estou mergulhado em um mar de lama", foi a frase
atribuída a Getúlio naqueles dias de tensão sem trégua.
A revelação alquebrou as forças do presidente. Segundo o
jornalista Glauco Carneiro conta em seu livro Lusardo, o Último Caudilho,
Oswaldo Aranha encontrou Getúlio debruçado numa janela do Catete, de óculos
escuros, procurando esconder os olhos vermelhos. "Reaja, você é um homem
forte", Aranha ainda tentou animá-lo. Mas o cerco se fechara.
No dia 21, o presidente recebeu no palácio o vice, Café
Filho, que dez dias antes havia se reunido secretamente com Carlos Lacerda e
aderido à conspiração. Café propôs a Getúlio o que havia combinado
anteriormente com Lacerda: a tese da renúncia conjunta do presidente e do vice.
Getúlio, porém, desconversou. No entanto, seus dias de governo–e de vida–já
estavam contados.
Em 22 de agosto, um grupo de brigadeiros divulgou um
manifesto que exigia a renúncia imediata do presidente. Os almirantes se
disseram solidários aos colegas da Aeronáutica e também pediram a cabeça de
Getúlio. A posição do Exército viria logo depois, no dia 23. Um documento
assinado por 27 generais circulou pelos quartéis e passou a ser entendido como
uma espécie de ultimato: "Os abaixo-assinados (...) declaram julgar como
melhor caminho para tranquilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas a
renúncia do atual presidente da República".
A notícia do Manifesto dos Generais, junto com a informação
de que se tornara praticamente impossível controlar a agitação na caserna,
chegou a Getúlio por volta de 00h daquele trágico 24 de agosto. A informação
seria levada ao Catete pelo ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, e
pelos também generais Mascarenhas de Morais e Odylio Denys.
Exausto, Getúlio disse-lhes que convocaria uma reunião
ministerial no dia seguinte para discutir a gravidade da situação. Mas o
general Mascarenhas, apreensivo, aconselhou ao presidente que, mesmo levando-se
em conta o adiantado da hora, era melhor que todos os ministros fossem tirados
da cama e convocados imediatamente ao palácio. Getúlio compreendeu a urgência
do caso, acatou a sugestão e ordenou que os assessores se concentrassem na
tarefa de acordar o ministério com telefonemas disparados no meio da madrugada.
A tal reunião se arrastou, lenta, até depois das 4 da manhã,
sem chegar a nenhuma conclusão. Alguns ministros sugeriram a resistência,
apoiados pela palavra firme da filha do ex-presidente, Alzira Vargas, que mesmo
não sendo convidada invadira o salão ministerial e fizera questão de participar
da reunião. Outros, a exemplo de José Américo de Almeida, ministro das Viações
e Obras Públicas, afirmaram que a melhor saída, para evitar derramamento de
sangue, seria mesmo resignar-se e submeter-se à renúncia.
Impaciente, Getúlio abriu a agenda pessoal e rabiscou a
seguinte nota: "Já que o ministério não chegou a uma conclusão, eu vou
decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a
ordem for mantida, entrarei com um pedido de licença. Em caso contrário, os
revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver". Aquela última frase da
anotação, logo se saberia, não significava um esforço retórico, uma mera frase
de efeito.
Dias antes, em 13 de agosto, Alzira Vargas já encontrara um
rascunho, escrito a lápis pelo pai, no mesmo tom: "Deixo à sanha dos meus
inimigos o legado da minha morte". No dia 23, véspera da reunião
ministerial, o jornal getulista Última Hora, de Samuel Wainer, publicara uma
manchete que também se anunciaria profética: "Getúlio ao povo: Só morto
sairei do Catete".
Após a reunião, sozinho em seu quarto, Getúlio não conseguiu
pregar o olho. Foi procurado pelos familiares pelo menos três vezes entre o
final da madrugada e o começo da manhã. Primeiro, Alzira levaria a ele a nota
oficial redigida pelo ex-ministro da Justiça, Tancredo Neves, anunciando a
decisão presidencial de licenciar-se do cargo até que todas as acusações fossem
devidamente apuradas.
Getúlio não quis ler a mensagem e pediu para que o deixassem
sozinho. Poucos minutos mais tarde, em duas ocasiões, o irmão Benjamin foi
também até o quarto, agora para dar-lhe duas más notícias: o IPM estava
convocando Bejo para depor imediatamente e os militares não haviam aceitado a
ideia de uma simples licença. Os quartéis insistiam no afastamento definitivo
do presidente.
A morte
Às 8h30 da manhã, ouviu-se um tiro. Os familiares
encontraram Getúlio agonizante, o corpo sobre a cama, o buraco da bala pouco
acima do monograma "GV" gravado no bolso do pijama, por onde o sangue
corria aos borbotões. "Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na
vossa consciência e manterá a vibração sagrada da resistência", diria certo
trecho da carta-testamento.
Há quem diga que o texto não era de Getúlio e sim do
jornalista José Soares Maciel Filho, que o escrevera sob encomenda. Porém,
nesta história cheia de controvérsias, pontos obscuros e detalhes nunca
esclarecidos, a autoria da carta é o que menos importa.
O fato é que, se houvesse sucumbido à renúncia, tendo em
vista a sanha de seus adversários e as graves acusações que recaíam contra si e
seus familiares, Getúlio teria sido alvo de um linchamento moral sem
precedentes. "Getúlio tinha uma profunda consciência de seu significado
como personagem histórico. Seu último e trágico gesto precisa ser compreendido
dentro dessa dimensão", afirma o historiador Jaime Pinsky, professor da
Unicamp. Quer dizer: o suicídio foi um ato político. "Ele preferiu
protagonizar um teatro de tragédia a submeter-se à humilhação e ao teatro
patético que os adversários encenariam com sua renúncia", diz.
Segundo o historiador Marco Antônio Villa, autor de Jango,
um Perfil, aos 72 anos Vargas apresentava um certo cansaço e uma indisfarçável
solidão. "Durante todo aquele mês de agosto, ele se sentiu abandonado
pelos antigos aliados. Com toda a sua história de vida, ele não se submeteria
mais à renúncia ou à derrota final do exílio", diz. Para o presidente, a
única forma de impedir a humilhação de uma devassa em sua vida era o suicídio.
Outro ponto pendente é que, vivo, Getúlio, ou pelo menos sua
família, teria de enfrentar a Justiça. "A chamada República do Galeão
prosseguiria fustigando-o, num processo que talvez culminasse com sua prisão ou
a prisão de gente muito próxima a ele", diz Marco Antônio. De fato, menos
de um mês depois da morte do presidente, o IPM que investigava o atentado a
Lacerda foi encerrado e o irmão de Getúlio, Benjamim, e o filho, Lutero,
inocentados.
Com o suicídio e a comoção nacional que se seguiu, Getúlio
transformou seu nome em mito. "Não foi uma decisão fácil, mas a percepção
que Getúlio tinha de si mesmo, de seu papel histórico, transcendia sua própria
existência terrena, de carne e osso", diz Jaime Pinsky.
Assim, os que conspiraram contra ele tiveram que esperar dez
anos para, só então, concretizar seus planos. Antes disso, apesar de algumas
tentativas, não houve clima político nem apoio popular para tal. Só exatamente
uma década depois a Banda de Música udenista e os mesmos militares que
assinaram o Manifesto dos Generais conseguiriam chegar ao poder, após
derrubarem o herdeiro direto do getulismo, João Goulart.
Afinal, o golpe de Estado que o país assistiria em 1964 foi,
em edição revista e atualizada, o mesmo que Getúlio adiou, em 1954, ao apontar
contra o próprio peito o cano frio do Colt calibre 38 com cabo de madrepérola.
Nenhum comentário:
Postar um comentário