Exatamente às 14h23 da última terça-feira (18), o
deputado federal Ricardo Barros (Progressistas-PR) tomou a palavra no plenário
da Câmara dos Deputados. Era a primeira vez que ocupava o microfone em uma
sessão como líder do governo Jair Bolsonaro (sem partido) na Casa. De máscara
preta e óculos apoiados na ponta do nariz, fez um discurso protocolar:
agradeceu a confiança do presidente e pediu apoio aos colegas. Às 15h14, Barros
voltou ao microfone – já sem máscara nem óculos. E se mostrou ainda mais confortável
no perfil que vem exibindo ao longo de seis mandatos: um profissional da
política, capaz de permanecer no poder mesmo que o poder mude de mãos. Foi
líder de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), vice-líder de Lula (PT) e de Dilma
Rousseff (PT), além de ministro da Saúde de Michel Temer (MDB). E não vê
problema nisso.
“Qual o sentido disso? [de ser líder de diferentes
governos]. O sentido é dar governabilidade ao governo que se elege. O nosso
sistema é o presidencialismo de coalizão. O nosso sistema exige maioria ou três
quintos [dos votos] para emendas”, disse, em tom didático, em seu primeiro
pronunciamento ao assumir o cargo. “A função do líder do governo é formar
maioria, agregar, convencer, ceder, para que haja o entendimento e para que o
conjunto dos partidos possa, por maioria, aprovar as matérias aqui na Casa”,
disse. Deputado federal desde 1995, notável membro do Centrão, grupo de
partidos mais conservadores da Câmara, Barros já passou pro PR, PFL, PPB e PP.
Sabe a hora de se aproximar de determinado governo, mas também é capaz de
desembarcar dele sem pudores. À piauí, definiu-se como “um político
de resultados” e “um bom articulador”.
O anúncio de que fora escolhido como novo líder veio num
período delicado, quando Barros faz o que chama de “programa de
desintoxicação” – a cada três meses, passa uma semana sem se alimentar de
sólidos, jejuando e tomando exclusivamente água. A restrição terminara no
domingo retrasado, quando completaram-se sete dias de jejum. Sete dias sem
comer. É um tema sobre o qual o deputado evita falar. “É um programa de
desintoxicação que eu faço de forma frequente. Em uma semana, só água”, disse.
“É jejum. Jejum está na Bíblia, amigo”, acrescentou Barros, que não se diz
essencialmente religioso.
Se faz o jejum nesses períodos definidos, Barros não esconde
o apetite pela política e pelo poder. Deputados da base e da oposição fizeram
uma leitura parecida sobre a escolha dele para o posto de líder: Bolsonaro
abraça definitivamente o Centrão na tentativa de minimizar sua inaptidão
política em compor consensos, terceirizando o trabalho para um “profissional”.
Em sua primeira sessão na liderança, Barros já elegeu sua primeira missão: a
costura política para aprovação da reforma tributária. O Centrão, por sua
vez, também já demonstrou sua voracidade: de cada cem funcionários
comissionados com filiação partidária no Executivo, 39 são filiados a
partidos do bloco (como PP, MDB, DEM, PSD, entre outros).
Nascido em Maringá, interior do Paraná, Barros tem 60 anos.
É um homem de estatura mediana, ligeiramente calvo e de expressão sisuda.
Raramente ri e, quando o faz, nunca é um sorriso aberto. Até aos domingos
costuma cumprir expediente em seu escritório, em Maringá, e quem é próximo dele
diz que seu único interesse é a política. “Você nunca vai ver o Ricardo
[Barros] falando de futebol, de um lugar que ele foi, de alguma coisa que
comprou. É só política”, disse um aliado. Entre colegas e desafetos, a palavra
usada com unanimidade para descrevê-lo é “pragmático” ou expressões que caem
como sinônimos, de “calculista” a “trator” – perfil que, para quem está do lado
oposto, pode ajudar a botar panos quentes na tensão entre Bolsonaro e o
Congresso.
“Todo mundo sabe que o Ricardo [Barros] cumpre o que ele
combina. Não tem surpresa. Vai chegar na hora da votação e ele não vai
descumprir a palavra. Para nós, da oposição, é bom você ter um líder assim, que
cumpre, senão vira confusão. O Ricardo tem esse pragmatismo e essa condição”, opinou
o deputado Luciano Ducci (PSB-PR). “O que mais chama a atenção é o pragmatismo
dele. Qual a visão que parte da sociedade tem de um bom deputado? É o que
consegue recursos. Isso ele faz. E faz o que acha que precisa fazer”, disse o
deputado federal Gustavo Fruet (PDT-PR).
Um exemplo do modus operandi de Barros se deu em 2016,
quando ele abandonou o governo Dilma. Em abril daquele ano, durante o processo
de votação na Câmara da admissibilidade do pedido de impeachment da então
presidente, Barros era vice-líder do governo. Apenas na véspera da votação
anunciou publicamente que se posicionaria em favor da tramitação do
impeachment. Embora ainda estivesse no governo, nos bastidores Barros vinha
negociando com o grupo de Temer e já era cotado para o Ministério da Saúde,
caso Dilma fosse deposta – o que acabou ocorrendo. “Ele [Barros] fez como um
bom batedor de pênalti: esperou até o último momento pra bater na bola. Quando
viu que o goleiro ia cair para um lado, virou o pé e chutou no outro canto. Mas
se você preferir, pode usar a metáfora de ‘um pé em cada canoa’”, comparou um
parlamentar de oposição.
Outra passagem, essa em 2010, lhe rendeu um apelido do qual
não gosta nem um pouco: Leitão Vesgo. Na ocasião, o deputado avaliava quem
apoiaria nas eleições para o governo do Paraná, se Beto Richa (PSDB) ou Osmar
Dias (PDT), então aliado do PT. Em uma reunião em Brasília, da qual
participavam Gleisi Hoffmann (PT) e o deputado federal Fernando Giacobo (PL),
Dias se irritou com a indefinição e disse: “Ô, Ricardo! Você fica mamando na
teta do governo, enquanto, feito um leitão vesgo, já tá olhando para a teta do
Beto Richa”. No Paraná, a alcunha pegou, principalmente entre os desafetos.
Como ministro da Saúde, deu uma série de declarações
que repercutiram muito mal. Criticou a quantidade de exames feitos pelo SUS,
argumentando que 80% apontavam “resultado normal”, disse que pacientes
“imaginam” doenças e que médicos “fingem trabalhar”. Mas os deslizes no
discurso não foram os maiores problemas em sua gestão no Ministério.
No ano passado, o deputado foi alvo de uma ação
civil pública de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público
Federal (MPF) em razão de fatos que ocorreram quando era ministro.
Conforme a investigação conduzida em 2017, houve irregularidades na compra de
medicamentos para doenças raras. As fornecedoras atrasaram a entrega dos
medicamentos, o que resultou na morte de catorze pacientes, segundo o MPF. De
acordo com a ação, uma das empresas, a Global, ganhou um dos processos de
compra emergencial em 2017 sem cumprir os requisitos exigidos, como dispor de
todas as licenças, ser cadastrada pelo fabricante e dispor do medicamento em
estoque. Ainda assim, de acordo com o MPF, o Ministério da Saúde levou a
compra adiante e fez um adiantamento à Global. O processo ainda não foi
analisado pela Justiça.
Na ocasião da denúncia, Barros emitiu nota em que afirmou
que o MPF escolheu “o lado errado da luta no SUS” e que “deveria acusar
as empresas que mantêm monopólio de representantes para explorar o erário
público”. O deputado disse que a legislação foi cumprida rigorosamente nas
aquisições e que, no período em que esteve à frente do Ministério, bilhões de
reais foram economizados em 22 meses. A piauí não conseguiu
contato com a Global. À época, a empresa afirmou que parte dos produtos havia
sido entregue e que estava negociando com o Ministério da Saúde a devolução do
dinheiro referente ao montante não repassado.
Também em 2017, em outra ação civil pública do MPF, o então
ministro da Saúde foi acusado de tentar beneficiar seu reduto eleitoral. Na
época, Barros anunciou uma parceria milionária por meio da qual o Ministério da
Saúde transferiria ao Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), empresa
pública do governo do Paraná, e à empresa suíça Octapharma a responsabilidade
da produção de parte dos hemoderivados que seriam, posteriormente, adquiridos
pelo próprio Ministério. A ideia era que o Tecpar passasse a gerir o
processamento e a logística do plasma no Centro-Sul e Sudeste do país, além de
investir 82 milhões de reais na construção de um centro em Maringá. O anúncio
foi feito quando Cida Borghetti, mulher de Barros, era vice-governadora, em uma
solenidade com a presença do ministro.
Na época, os hemoderivados eram produzidos exclusivamente na
Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), cuja sede fica
em Pernambuco. O MPF chegou a pedir que Barros fosse afastado do Ministério – o
que foi negado pela Justiça. Responsável pelo caso, a procuradora Silvia Regina
Pontes Lopes disse que o então ministro assumiu o compromisso público de levar
o “mercado de sangue” ao Paraná, como forma de “esvaziar” as atribuições da
Hemobrás e beneficiar seu estado natal.
Barros acabou deixando o Ministério da Saúde não em razão do
processo, mas para disputar as eleições de 2018. No governo Bolsonaro, o
Ministério da Saúde mudou seus planos em relação aos hemoderivados, o que fez
com que a ação perdesse efeito. A fábrica do Tecpar em Maringá nunca chegou a
ser construída. Em julho do ano passado, o Ministério da Saúde suspendeu as
parcerias, que se encontram em processo de revisão. Com a suspensão, os
recursos anunciados na solenidade conduzida por Barros e Cida não chegaram a
ser repassados ao Tecpar, conforme o Instituto. “A técnica manda que se tenha três
fábricas, com operações com sangue. Por ativismo político, o MPF quer que tudo
fique lá na Hemobrás. Não há razão técnica nem logística para isso. Vamos
aguardar a nova direção da Hemobrás, que posicionamento trará, porque é
importante que tenhamos mais opções de produção e processamento de plasma”,
disse Barros, em áudio enviado à piauí.
No campo político, Barros tem um inimigo em comum com
Bolsonaro: o ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, também maringaense. Como quase
todo o Centrão, o deputado é ferrenho crítico da Lava Jato. Ao longo dos
últimos anos, deu uma série de declarações contra a força-tarefa – dizendo
coisas como a operação “quebrou o país” – e contra seus principais personagens,
como Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Nas planilhas da Odebrecht com nomes
de doações feitas a políticos – o que não é ilegal – , Barros é citado. Entre
os documentos apreendidos na casa de Benedicto Junior, então presidente de
Infraestrutura da empreiteira, o deputado aparece como tendo recebido 100 mil
reais. Entre os 3,1 milhões de reais que recebeu em doações em 2014, não
há doações da empresa.
Segundo Barros, a planilha se referia a pedidos de doação
eleitoral para a campanha de Carlos Roberto Pupin (PP), a quem o deputado
apoiava na disputa à prefeitura de Maringá, nas eleições de 2012. Barros
afirmou que “não era candidato e não houve nenhuma doação, nem oficial, nem
extraoficial da Odebrecht ao candidato na época” e que “seu nome não apareceu
em nenhum inquérito, denúncia ou delação” da Lava Jato.
Aveia política de Barros vem de família, uma
oligarquia do Paraná baseada em Maringá – município de 423 mil habitantes,
emancipado em 1951. Pai de Ricardo, Silvio Magalhães Barros é reverenciado como
um dos “pioneiros” da cidade. Aportou na região ainda na década de 1940, para
trabalhar com agrimensor. Ao longo dos anos seguintes, o forasteiro nascido em
Minas Gerais foi se tornando influente politicamente, a ponto de se eleger
vereador em 1960, pela União Democrática Nacional (UDN). A partir daí, a
carreira de Silvio decolou. Com a ditadura militar e o bipartidarismo,
filiou-se ao Movimento Democrático Brasileiro, pelo qual foi eleito deputado
estadual, federal e prefeito de Maringá. Em 1979, morreu vítima de um infarto
fulminante.
Com a morte prematura do pai, coube a Ricardo assumir o
papel de chefe dos Barros. Após concluir o curso de Engenharia Civil, na
Universidade Estadual de Maringá (UEM), aproximou-se, ao poucos, da política.
Em 1988, aos 28 anos, venceu a eleição à prefeitura, pelo PFL. Em 1994, fez-se deputado
federal. Seu irmão mais velho, Silvio Magalhães Barros II, entrou na política e
foi eleito prefeito de Maringá em 2004.
Barros também levou para a política sua mulher Cida
Borghetti, ex-militante do PDS Jovem – como foi rebatizada em 1980 a Arena,
partido de sustentação ao regime militar. Cida Borghetti foi deputada estadual
e federal. Em 2014, foi vice na chapa de Beto Richa (PSDB), que disputava a
reeleição e em 2018, quando Richa deixou o governo para concorrer ao Senado,
Cida assumiu o Palácio Iguaçu até o fim do mandato. Ela chegou a disputar a
eleição seguinte ao governo, mas foi derrotada por Ratinho Junior (PSD). A
filha caçula do casal, Maria Victoria, já está no segundo mandato como deputada
estadual do Paraná.
Ao longo das eleições de 2018, a posição de Barros beirou a
neutralidade em relação à sucessão presidencial. No primeiro turno, o PP
integrou a coligação que apoiou a candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB), mas o
deputado concentrou todos seus esforços fazendo campanha pela mulher, Cida
Borghetti, que disputava o governo do Paraná. No segundo turno, permaneceu em
cima do muro, dizendo que o partido liberaria seus filiados para votar como
quisessem.
Em uma manhã no fim de janeiro de 2019, Barros encontrou
parlamentares paranaenses em um voo comercial de Curitiba a Brasília. Ao longo
da “conversa de avião”, um colega da Câmara observou que Barros se mantinha
distante do governo que se iniciava.“Tá quietão por quê, Ricardo?”, perguntou.
Barros respondeu com uma espécie de prenúncio: “Eles vão precisar de
articulação. Minha hora vai chegar”. No mês seguinte, disputou a eleição
para presidência da Câmara, mas obteve apenas quatro votos. Quem convive
com o deputado diz que ele nem se abateu. Sabia que a forma como Bolsonaro
vinha se relacionando com o Congresso não se sustentaria por muito tempo. Em
setembro do ano passado, Barros subiu o tom em uma reunião da bancada
paranaense com o titular da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos,
como se preparasse o terreno.
“O presidente não pode demitir o deputado, mas o deputado
pode demitir o presidente”, disse. “A palavra final é nossa. Ele é que tem que
querer estar de bem conosco. Se ele não quer, está ótimo para nós”,
acrescentou. Conforme percebia que a necessidade de articulação do governo com
o Congresso aumentava, Barros adequava seu discurso ao bolsonarismo. Já nos
primeiros meses deste ano, passou a ser a sondado pelo Planalto. Em abril, em
meio à pandemia do novo coronavírus, Barros, a mulher, a filha, o genro e a
neta foram diagnosticados com Covid-19. O deputado chegou a ficar internado por
dois dias na Santa Casa de Maringá. Em entrevista à CNN após receber alta
médica, declarou que tomou cloroquina. Um ano e sete meses depois daquela
“conversa de avião”, em que previu que o governo precisaria de sua ajuda,
Barros se tornava líder de Bolsonaro. “O Congresso e o Executivo têm que
trabalhar juntos para atingirem seus objetivos”, disse Bolsonaro ao final da
primeira reunião com o líder. Estava selada a aliança. Em se tratando de
Barros, só não se sabe até quando.
Repórter freelancer em Curitiba.
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