Dom Pedro Casaldáliga Plá, bispo emérito de São Félix
do Araguaia, morreu no último dia 8, aos 92 anos, depois de três décadas
convivendo com o mal de Parkinson. O povo o chamava bispo dos pobres, e os
fazendeiros, de bispo vermelho. Desde que chegou ao Brasil, em 1968, vindo da Espanha,
sempre foi um homem ameaçado de morte. A primeira tentativa de que se tem
notícia foi em 1971, quando um pistoleiro, arrependido, confessou ao bispo que
havia sido contratado para matá-lo. Por mero acaso, fui testemunha de uma
dessas ameaças.
Era 1972, o país vivia a ditadura militar, eu tinha 22 anos
e cursava o terceiro ano de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da
USP. À noite trabalhava como “contador de linhas” produzidas pelos linotipistas
do Estadão. Consegui estágio na redação do jornal, no 6º andar do
prédio da Major Quedinho. Era um estágio informal, sem registro nem pagamento.
Eu só queria poder trabalhar na redação. Num daqueles dias, a pauta me incumbiu
de checar uma denúncia feita por um grupo de desapropriados. Eles se queixavam
de que a Prefeitura de São Paulo os chantageava para que aceitassem valores
menores.
Propus ao advogado das vítimas que me incluísse no grupo, e
assim pude gravar as propostas feitas pela prefeitura e publicá-las no jornal.
Quando a matéria saiu, o advogado me convidou para uma conversa. Tinha me saído
tão bem – ele disse – que guardava para mim um furo nacional. Um grupo de
índios Xavante do Mato Grosso estava morrendo de tuberculose, ninguém se
importava com eles, enquanto ele – o dono das terras – tentava salvá-los
levando à aldeia caixas de medicamentos. Seu convite era para acompanhá-lo
nessa “entrega”, e eu retrataria numa reportagem seus esforços para salvar os
índios. Aceitei com a condição de que minha chefia não soubesse. Se relatasse o
episódio e o convite na redação, mandariam um repórter mais experiente, não um
foca sem registro.
Uma semana depois embarcamos em Congonhas com destino a
Cuiabá. De lá, seguiríamos em camioneta até as margens do Rio Couto de
Magalhães, 1 mil km de estradas de pó e buracos, onde ficava a “aldeia doente”.
Era minha primeira viagem de avião e me esforçava por disfarçar a ansiedade e o
medo. Observava o que os outros faziam e fazia a mesma coisa. Foi assim que
aprendi a apertar o cinto.
O advogado mantinha sobre as pernas uma maleta de couro que
abriu um tempo depois que o avião acendeu as luzes para fumar. Sobre a camada
de documentos, repousava um revólver calibre 22, que ele fez questão de exibir.
Na época, não havia controle de armas nos aeroportos. O advogado mostrou o
revólver sem se incomodar com comissários de bordo que caminhavam pelo corredor
nem com o olhar dos vizinhos de assento. Foi então que revelou suas intenções.
“Estou tentando salvar esses índios. Ou eles se retiram das minhas terras, ou
vão morrer pela doença ou pela bala.”
Era, na verdade, um fazendeiro tentando ampliar suas posses
na Amazônia, não um advogado preocupado com os índios. No voo, a conversa se
estendeu – eu quase mudo – até desembocar no nome de dom Pedro Casaldáliga. Ele
já era odiado pelos grandes proprietários, garimpeiros, posseiros, desmatadores
em geral. “Já devia estar morto ou na cadeia, esse comunista subversivo. Guardo
uma bala para ele”, disse o advogado fazendeiro, esperando alguma manifestação
de minha parte.
Meu anfitrião percebeu logo que eu não era parceiro de seus
propósitos nem de suas preocupações. Eu estava viajando com o “inimigo”, e não
podia dizer isso nem tinha um meio de voltar atrás. Meu anfitrião não podia
imaginar que, além de admirador de dom Pedro Casaldáliga, eu tinha o privilégio
de recebê-lo na república de estudantes onde morava. Quando o bispo viajava a
São Paulo, tinha o apoio de amigos que dividiam com ele seus trabalhos no
Araguaia.
Um desses amigos era Antonio Carlos de Moura Ferreira,
também estudante de jornalismo na ECA-USP. Eu o conheci nas aulas
de antropologia do professor Egon Schaden, respeitado dentro e fora do
país por seus estudos sobre indígenas. Moura era um jovem imbuído do mais puro
sentimento de justiça, inconformado com a desigualdade. Compartilhava as lutas
de dom Pedro pelos moradores do Araguaia. Mais tarde, terminado o curso de
jornalismo, Moura se fixou na região e se dedicou inteiramente à sua
“militância cristã subversiva” ao lado de dom Pedro. Morreu de câncer, muito
jovem, depois de se estabelecer com a família em Goiânia. Tomo a liberdade de
lembrá-lo nesta pequena homenagem por conta de seu empenho pela igualdade, da
qual nunca desistiu.
Foi Moura quem me convidou para dividir a república onde
morava, no número 359 da Rua das Palmeiras, em Santa Cecília. Ficava no 14º
andar de um prédio que no térreo abrigava um supermercado. Nessa república
conheci dom Pedro Casaldáliga. Com frequência ele se instalava ali, silencioso
na sua presença como hóspede. A república tinha dois quartos, cada um com dois
beliches, e dom Pedro preferia sempre a cama de baixo. Antes de se
recolher num sono quieto, falava de suas preocupações e angústias com o povo do
Araguaia. Era um entusiasta da vida e um poeta cativante. Às vezes, antes de dormir,
recitava alguns dos seus versos, com sotaque catalão. Suas passagens
preocupavam dona Zefa, que zelava pela república. Sempre se perguntava pela
“comida do bispo”, embora dom Pedro se alegrasse com pratos simples à moda do
sertão, arroz, feijão e alguma carne.
Dom Pedro Maria Casaldáliga Plá nasceu em Balsareny,
na província catalã de Barcelona, no dia 16 de fevereiro de 1928. Ingressou na
Ordem Claretiana, consagrada às missões, e foi ordenado sacerdote em 1952. Em
1968, ano em que a ditadura implantou o AI-5, desembarcava em São Félix do
Araguaia, região mato-grossense conhecida na mídia pela pobreza e pela disputa
que a vasta terra “sem dono” despertava na elite econômica do país, incentivada
pelo regime militar. Em 1971, foi ordenado bispo da Prelazia de São Félix do
Araguaia. Amava tanto seu povo e seu rio que pediu para ser enterrado às
margens do Araguaia, no cemitério Karajá, onde estão corpos de índios e
trabalhadores sem terra explorados ou assassinados por grileiros ou a mando de
grandes proprietários da região. Assim foi feito na tarde no último dia 12.
O bispo e sua gente foram duplamente perseguidos. De um
lado, sofriam a pressão e ameaças de fazendeiros, grileiros e empresários em
busca de terras. De outro, o grupo da Prelazia – religiosos, agentes pastorais
e a população local – era associado à Guerrilha do Araguaia, que se estendeu de
fins dos anos 1960 a 1974. Documentos do Acervo da Prelazia de São Félix e
historiadores relatam torturas, invasões de residência e toda sorte de
violência contra dom Pedro, moradores e membros leigos da Prelazia. Moura
Ferreira e José Pontim – que foi prefeito e vereador em São Félix do Araguaia –
estavam entre os leigos torturados. Os militares buscavam indícios de que
haveria ligação entre a Prelazia e os guerrilheiros do Araguaia.
No entanto, a Guerrilha do Araguaia ocorria no Sul do Pará,
nas margens do mesmo Araguaia, bastante distante da Prelazia de São Félix. Para
os militares era incompreensível que jovens abandonassem estudo e trabalho para
se juntarem a um bispo estrangeiro. Por trás, só poderia estar a guerrilha,
patrocinada pelo PCdoB, acreditavam. Para dom Pedro, o inimigo eram a
injustiça e a violência impostas aos moradores e índios. O responsável era um
governo que incentivava o avanço das novas fronteiras agrícola e econômica, com
o empenho de órgãos como a Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia – e o Basa, o Banco da Amazônia.
Incansável, cheio de coragem na sua estatura franzina, dom
Pedro era admirador de Che Guevara e Fidel Castro. Foi um animador da Teologia
da Libertação e implantou nas escolas da Prelazia o método Paulo Freire de
educação. Está entre as lideranças mais representativas da Igreja Católica na
América Latina. Participou da criação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário)
e da CPT (Comissão Pastoral da Terra). O mais contundente defensor da Reforma
Agrária, era tido como o inimigo mais ferrenho pelos latifundiários. Quando fui
convidado pelo advogado fazendeiro para a reportagem com os Xavante, dom Pedro
já era conhecido, dentro e fora do país, por dois de seus principais textos. Um
deles, de 1970, tratava da Escravidão e Feudalismo no norte do Mato
Grosso, no qual descrevia os desmandos na região. No ano seguinte, já
nomeado bispo da Prelazia de São Félix pelo papa Paulo VI, publicou Uma
Igreja da Amazônia em conflito com o Latifúndio e a marginalização social.
No livro, ele faz uma detalhada denúncia contra os grandes proprietários de
terra, citando nomes de empresários e suas empresas.
Uma de suas poesias, batizada Confissão do
Latifúndio, traduz o que pensa dos latifundiários e suas cercas, suas
queimadas e suas leis:
“Por onde passei,
plantei a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei a morte matada.
Por onde passei,
matei a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.”
Naquele início dos anos 1970, a Funai buscava o
reconhecimento para as reservas Xavante, reconduzindo grupos que haviam perdido
suas terras originais. Com a reportagem, o advogado fazendeiro buscava chamar a
atenção para o abandono em que vivia aquele grupo, ao mesmo tempo que
reivindicava como sua parte daquelas terras. Já sem acreditar na minha
parceria, o fazendeiro despejou as caixas de antibióticos no meio da aldeia e
informou que eu ficaria ali até o seu retorno. Dois ou três índios adolescentes
falavam português. Apontaram a maloca de sapé onde eu deveria permanecer. Era a
farmácia da Funai, com as prateleiras de galhos trançados, tomadas por
cápsulas, comprimidos e frascos para injeção, tombados, quebrados, empoeirados.
Na tribo me ofereciam arroz mal cozido com uma gema de ovo,
e as mulheres me jogavam pedras quando eu tentava fotografar o jogo de futebol.
Eu dormia de calças e botas no jirau de galhos trançados, um metro acima do
solo, coçando bichos invisíveis que percorriam meu corpo. Depois do arroz
salgado, passava a noite ardendo de sede, sem coragem para atravessar a aldeia
e buscar água no rio. A maloca não tinha portas; na madrugada, entravam cães
enfurecidos e mães com crianças chorando no colo, à procura de remédio.
Tateavam no escuro e levavam qualquer coisa. Pensava comigo: os desastres na
área da saúde um dia certamente estarão listados entre as causas do genocídio
do povo indígena.
No início da noite, os homens se reuniam em roda prometendo
guerra aos fazendeiros vizinhos, depois de rezar em latim dois terços inteiros.
A vigília terminava em gritos e ameaças ao inimigo, que um garoto Xavante
tentava traduzir, esforçando-se para me acalmar. As noites ali coincidiram com
o ritual que batizava os meninos em adultos, tomadas por uivos, gritos e
gemidos que me gelavam a alma.
O fazendeiro só apareceu uma semana depois. Eu estava
emagrecido e chocado com as imagens que se misturavam. Índios que vestiam
várias camisetas, umas sobre as outras, estampando times de futebol, trocadas
com turistas que transitavam por estradas a alguns quilômetros de distância.
Grupos que rezavam em latim enquanto prometiam às entidades guerra aos invasores
fazendeiros. Frascos de remédio sem rótulos que substituíam as curas
tradicionais. Espingardas e anzóis que trocaram pelo arco e flecha, mas que já
não conseguiam evitar a fome.
Nunca mais soube do advogado fazendeiro que reservara uma
bala de seu revólver para dom Pedro Casaldáliga. Em plena ditadura, a matéria
nunca foi publicada.
*(Pedro Casaldáliga, em Versos Adversos –
Antologia Editora Fundação Perseu Abramo – 1ª edição, 2006).
Jornalista, autor da coletânea de reportagens Cirurgia em
campo aberto. Passou por Veja, Jornal da Tarde, Folha de S.Paulo e O Estado de
S.Paulo
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