Em 11 de abril de 2020, poucos dias antes de
deixar o cargo, Luiz Henrique Mandetta entrou num helicóptero da Marinha com
Jair Bolsonaro para irem juntos a Goiás. Pretendiam visitar as obras de um
hospital de campanha construído pelo governo federal no estado. Os dois
se sentaram frente a frente na aeronave, mas, durante os quinze minutos de voo,
o presidente não trocou uma palavra com seu ministro da Saúde. Antes de
embarcar, Mandetta e os demais integrantes da comitiva tinham combinado de
evitar aglomerações. Bolsonaro vinha participando de manifestações sem usar
máscara e sem manter uma distância segura das pessoas, o que irritava o
ministro. A combinação, porém, foi esquecida assim que o presidente desceu do
helicóptero e se embrenhou no meio do povo que o esperava. Quando finalmente
chegou ao lugar onde Mandetta, o governador Ronaldo Caiado e os outros se
encontravam, Bolsonaro ria, satisfeito: “Agora, sim, está todo mundo
contaminado.”
O episódio,
descrito em Um Paciente Chamado Brasil, livro que Mandetta
lança hoje pela editora Objetiva, funciona como alegoria do governo nos
primeiros meses da pandemia de Covid-19. Não é segredo para ninguém que
Bolsonaro negou a gravidade da crise e boicotou sistematicamente o isolamento
social proposto pelos governadores e pelo Ministério da Saúde. Mas saber em
detalhes o que ocorria nos bastidores enquanto o presidente se comportava dessa
maneira pode nos levar a conclusões interessantes.
A primeira: a julgar pelo que conta o autor do livro, a atitude pública
confrontadora de Bolsonaro se convertia em uma postura evasiva durante os
embates cara a cara com Mandetta. No início de abril, antes da viagem a Goiás,
o presidente havia dito à porta do Palácio da Alvorada que poderia usar a
caneta para trocar ministros que “viraram estrelas e falam pelos cotovelos”.
Enfurecido, Mandetta foi para cima de Bolsonaro numa reunião ministerial: “O
senhor tem que me demitir. Seria mais leal de sua parte. O senhor quer cobrar
lealdade, mas lealdade é uma via de mão dupla. O senhor está sendo desleal,
porque o senhor fala uma coisa e faz outra.” Nessa hora, o presidente
ficou sem reação, “como um lutador que foi nocauteado em pé”. Coube
ao ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, botar panos quentes:
“Vamos encerrar essa reunião.”
Poucos dias depois,
logo de manhã, a CNN Brasil divulgou o áudio de uma conversa entre o ministro
da Cidadania, Onyx Lorenzoni, e o deputado anti-isolamento social Osmar Terra,
em que os dois comentavam a atitude de Mandetta. Na gravação, quando Lorenzoni
disse que “teria cortado a cabeça” do ministro da Saúde, seu interlocutor
se animou: “Eu ajudo, Onyx. E não precisa ser eu o ministro, tem muita gente
que pode ser.” Naquela tarde, o presidente recebeu Mandetta em seu
gabinete com a tevê sintonizada no noticiário que exibia a reportagem. Depois
de se negar a pedir que o filho Eduardo baixasse o tom das críticas à China
para ajudar o Brasil a liberar uma carga de equipamentos médicos no país
asiático, Bolsonaro dispensou o ministro e soltou uma informação enigmática,
em meio a risadas de auxiliares: ele, presidente, iria comer um sonho no
dia seguinte. De fato, a promessa se cumpriu numa padaria de
Brasília – a mesma em que, dias antes, Mandetta tinha comprado pão
com a mulher e tirado fotos com populares. “Entendi, então, o motivo daquela
visita: se eu reclamasse que o presidente estava saindo e causando aglomeração,
apareceria em seguida uma foto ou vídeo meu no mesmo local.” O autor afirma que
isso o fez acreditar que estava sendo monitorado pelo serviço de informação de
Bolsonaro. “Aquilo foi um recado para me dizer que ele sabia dos meus passos,
da minha vida.”
A segunda conclusão que se extrai de Um
Paciente Chamado Brasil é que o negacionismo de Bolsonaro se tornou
tão contagioso quanto o coronavírus. Com exceção do presidente do Banco
Central, Roberto Campos Neto, que Mandetta diz ter entendido a gravidade da
crise sanitária desde o início, o resto do governo parecia imerso na mesma onda
de negação. Um dos que aparecem no livro recusando-se a enfrentar o problema é
o ministro da Economia, Paulo Guedes, que esbravejou contra o tabelamento de
preços de certos remédios em uma reunião com a equipe da Saúde, demonstrando
não saber que, por lei, medidas dessa natureza são definidas em um conselho do
qual seu próprio ministério participa.
Quando Mandetta
comunicou a Bolsonaro que pretendia fazer uma recomendação aos estados sobre os
procedimentos a serem adotados em velórios de vítimas do novo coronavírus, o
presidente vetou. Argumentou que era mórbido demais. A recomendação acabou
sendo feita tempos depois. Nos primeiros dias da crise, quando o secretário
nacional de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, publicou um boletim
proibindo partidas e chegadas de cruzeiros na costa brasileira, Bolsonaro quis
que a ordem fosse cancelada. O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o
próprio Lorenzoni reforçaram a pressão. Mandetta obedeceu.
O general Braga
Netto despistou quando o titular da Saúde perguntou se era verdade que o
secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, estava com Covid, o que levaria o
núcleo duro do presidente, incluindo Bolsonaro, a ter de cumprir a quarentena.
O próprio secretário negou ter contraído o coronavírus em suas redes sociais.
Só confirmou depois que sua mulher, Sophie, revelou a doença em um grupo de
WhatsApp. Já curado, Wajngarten entrou em conflito com Mandetta ao propor uma
campanha publicitária ufanista, que exaltaria o Brasil durante a
pandemia. Mandetta disse que não aprovava a iniciativa, mas Wajngarten alegou
que a propaganda não custaria praticamente nada, já que seria feita de forma
voluntária por artistas e atletas alinhados com a gestão de Bolsonaro. Tempos
depois, Wajngarten teria procurado Mandetta para pedir dinheiro do Ministério
da Saúde. Explicou que não havia conseguido fazer as peças de graça e que seria
preciso pagar. Mandetta negou e a campanha não saiu. Pelo jeito, nenhuma figura
pública aceitou associar sua imagem ao negacionismo governamental.
Recomenda-se, claro, encarar o relato do
ex-ministro com o devido desconto. Ele não é nenhum neófito. Foi secretário de
Saúde de Campo Grande e deputado federal pelo Mato Grosso do Sul em dois
mandatos. Apoiou Jair Bolsonaro desde a campanha à Presidência. No livro de 227
páginas, até chega a afirmar que foi um erro de seu partido, o DEM, não ter
aceitado a filiação do ex-capitão antes das eleições de 2018. Ao sair do
governo, com a popularidade turbinada pela atuação no ministério, Mandetta
declarou que participará dos pleitos de 2022 e admitiu que poderá se candidatar
a presidente ou a vice-presidente da República.
O ex-ministro
demonstra ter plena consciência da disputa que travou com Bolsonaro e não
esconde que buscou o conflito em vários momentos – inclusive ao dar,
em abril, a entrevista ao Fantástico que precipitou sua
demissão. Na ocasião, Mandetta reclamou do duplo comando por parte do
governo em relação à pandemia e disse que o brasileiro não sabia se escutava o
presidente ou ou ministro.
O autor tampouco
faz questão de esconder as pequenas vinganças. Um exemplo: em janeiro, pouco
antes de viajar a Davos, na Suíça, para participar do Fórum Econômico Mundial,
o presidente tentou trocar os quatro principais secretários do ministério por
aliados do filho Flávio – “gente nossa”, teria dito o pai.
“Quem articulou as exonerações e impôs novos nomes mirava o controle de mais de
80% do orçamento do Ministério da Saúde”, escreve Mandetta. O ministro
resistiu. Propôs uma solução alternativa, ele e o presidente ficaram de
conversar na volta, veio a pandemia, e o assunto ficou pendente.
Mas a história mais
picante do livro, que deve provocar frisson em Brasília, não tem relação com o
novo coronavírus. É a de como o então deputado Onyx Lorenzoni chantageou vários
colegas de Congresso em 2016, ao ser ameaçado de perder a relatoria do projeto
de lei que propunha dez medidas contra a corrupção. Segundo Mandetta, às
vésperas de apresentar seu relatório, o parlamentar teve uma reunião bastante
tensa com líderes de diversos partidos que o pressionaram a tirar do projeto as
cláusulas que transformavam caixa dois de campanha em crime inscrito no Código
Penal e previam a concessão de um prêmio em dinheiro para delatores. Como
Lorenzoni não concordou com as alterações, a reunião deu em nada. Mandetta
recebeu, então, a missão de tentar chegar a um acordo com o correligionário. Se
o ministro não conseguisse avançar, o DEM iria destituir o deputado do cargo e
apresentar outro relatório.
No meio das
tratativas, Lorenzoni sacou o celular do bolso e mostrou a gravação de toda a
reunião anterior, em que os colegas detonavam a Lava Jato e as dez
medidas. “Quero ver eles aguentarem a mídia em cima deles”, desafiou o
relator. O deputado foi mantido na função, mas se transformou em um pária na
Câmara, até colar em Jair Bolsonaro e acabar no Planalto. O episódio ajuda a
explicar a antipatia de vários líderes do Congresso pelo ex-ministro da Casa
Civil. Mandetta e Lorenzoni continuaram aliados até a pandemia. Não fosse a
chegada do vírus, que tumultuou o governo, desfez alianças e expeliu o próprio
Mandetta do ministério, essas e outras histórias poderiam ter ficado em segredo
para sempre.
MALU GASPAR Repórter da piauí, é autora do livro Tudo ou Nada: Eike Batista e a Verdadeira História do Grupo X, da editora Record
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