quinta-feira, 29 de outubro de 2020

É DANDO QUE SE RECEBE

Ascânio Seleme, O GLOBO

Uma das melhores séries políticas em cartaz nas redes de streaming mostra os intestinos da política na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos e civilizados da Terra. Chama-se “Borgen” e é excelente, feito goma arábica, de tanto que gruda. A história começa com a eleição do Parlamento e a construção de um novo governo de centro, em substituição a um de direita. Embora ficcional, a obra apresenta um bastidor imaginário do poder que não deve ser muito diferente do real, já que o roteiro é de três dinamarqueses. E esse é um valor extra que a série tem, além do entretenimento, pois se enxerga como funciona a realpolitik local.

Aquela aura de incorruptibilidade que se vislumbra sempre que um país nórdico é mencionado desvanece logo nos primeiros episódios. Claro que nada se compara ao Brasil, onde corrupto carrega dinheiro enfiado entre as nádegas, e operações políticas desviam bilhões de cofres de empresas públicas para contas de partidos. Mas nem por isso o que ocorre em Borgen é a quintessência do puritanismo na vida pública. Muito pelo contrário. Já no primeiro episódio, o primeiro-ministro que está de saída se vê na contingência de pagar compras da mulher com cartão corporativo oficial. Foi por acaso, pois ele estava sem a carteira. Mas, na chance que teve para devolver o dinheiro, foi convencido por um assessor de que era possível resolver aquilo jogando o gasto numa rubrica qualquer do gabinete.

Em seguida, passada a eleição, ocorre uma intensa negociação de cargos em troca de apoio. Até aí, tudo normal, está se construindo um novo governo, e partidos que são próximos politicamente repartem os ministérios entre si. Se é assim no presidencialismo, imagine no parlamentarismo, como o dinamarquês. Formado o governo, no momento em que a nova primeira-ministra tenta aprovar seu Orçamento, começa um festival de chantagens e traições. Dissidentes de um partido da base exigem dela a construção de uma estrada em troca de seus votos. E o que faz a primeira-ministra? Arruma seis bilhões de coroas (R$ 5,4 bi) para comprar os chantagistas. Mais alguns bilhões são dirigidos como subsídios a um setor da indústria local, de maneira a garantir o apoio de outro grupo.

Mais adiante, de forma a conseguir a extensão do prazo para aprovar o mesmo Orçamento, a primeira-ministra negocia com seu antecessor. Promete sentar em cima das investigações sobre aquele gasto privado do cartão corporativo, que acabou se tornando público durante a eleição, se ele a apoiasse na questão. Feito o acordo, a investigação sobre o crime é encerrada no dia seguinte, com o governo anunciando não ver elementos para seguir com o inquérito. De qualquer ponto que se olhe o caso, o que se vê é um escândalo. Não tem as dimensões tsunâmicas brasileiras, mas não é bobagem em se tratando do país menos corrupto do mundo, segundo o ranking da Transparência Internacional.

Na série há também ataques à imprensa. Pelo menos duas vezes jornalistas são abertamente constrangidos por membros do governo. Na primeira, uma repórter é intimidada na própria casa. Na segunda, a polícia entra numa redação de TV local que denunciava um caso e informa que os jornalistas estão sendo processados por interceptação de produto de roubo. O produto são fotos, repassadas a repórter por fonte militar, que mostram que aviões americanos pousaram em base dinamarquesa com prisioneiros ilegais. Apesar de a primeira-ministra ficar fula da vida com a incursão policial antes de ela acontecer, ela ocorre mesmo assim.

O leitor pode estar se perguntando o que o articulista quer provar com isso. Nada. Trata-se, como já foi dito, de uma ficção. Obviamente não se pretende igualar a Dinamarca ao Brasil, à Somália ou ao Sudão. Mas parece claro, pelo menos para os roteiristas de “Borgen”, que maracutaia ocorre no mundo inteiro. Todo país tem um centrão para chamar de seu.

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