O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte
formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais
mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação
popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet,
consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com
sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista,
ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter
privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A
convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e
representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do
autoritarismo para a democracia plena.
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma
Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático
é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto,
simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto
de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a
eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do
poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo
Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um
plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma
tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de
2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos
políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro
político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente
Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em
relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é
social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual
“constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I)
construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o
desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à
economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos,
ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os
setores mais conservadores da nossa sociedade.
Mais poderes
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não
funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o
ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O
que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF),
cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando
decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo,
sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das
críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do
exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir
direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos
governantes.
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para
agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da
corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores
do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de
mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes.
Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara
e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que
não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto,
direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias
individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade
da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu
contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre
esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e
imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas
vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito
presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição
lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da
Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger
sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam
seus países autoritariamente.
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