Biografia de
Samuel Wainer conta como o jornalista se aproximou dos poderosos
SÃO PAULO No pior ano de sua vida, 1953, Samuel Wainer
foi para a cadeia, teve sua intimidade devassada por uma Comissão Parlamentar
de Inquérito, viu a tiragem do jornal Última Hora despencar, os anunciantes
sumirem e seu maior protetor, o presidente Getúlio
Vargas, se afastar.
Resolveu escrever à
filha do mandatário, Alzira, lembrando os votos de “confiança e amizade” que o
pai dedicara a ele e ameaçando virar a casaca e lutar contra o governo. Recebeu
como resposta um bilhete do punho de Vargas. “Alzira, diga ao Profeta que no
Brasil não há divórcio.”
O recado dá o tom
da intimidade assombrosa que o jornalista cultivou com um dos líderes mais
determinantes para os rumos do Brasil daquele século 20. Um casamento que foi
alvo, aliás, de uma ira que também encontra poucos paralelos na história.
Foi por causa dessa
ligação de Wainer com Vargas, segundo a biógrafa
Karla Monteiro, que se instaurou uma CPI no Congresso numa época em que
isso não era rotina.
A investigação
queria perscrutar os favorecimentos que o periódico getulista Última Hora teria
obtido dos cofres públicos —e comprovar as acusações, ventiladas pela oposição,
de que Wainer não tinha nascido no Brasil e, conforme a Constituição, não
poderia ser dono de jornal.
A volumosa
biografia que Monteiro publica nesta semana não deixa qualquer margem para
dúvida —Samuel Wainer era estrangeiro, tendo nascido numa região do leste
europeu conhecida naquele momento como Bessarábia.
À época da
inquisição parlamentar, toda a comunidade judaica em torno do jornalista fez um
pacto para corroborar sua versão, de que tinha vindo ao mundo numa rua do
bairro do Bom Retiro. Ninguém próximo a Wainer jamais quebrou essa narrativa.
Mas a biógrafa
achou um depoimento da irmã dele, Bertha, nos arquivos do Museu da Imigração,
detalhando a viagem de toda a família da Europa ao Brasil em 1921 —não se sabe
com exatidão o ano de nascimento do jornalista, mas a melhor estimativa é algo
em torno de 1912.
E o empenho em
manter segredo era tamanho que, mesmo nesse depoimento ao museu em 1994, Bertha
ainda se apressa em comentar que Wainer tinha nascido no Brasil, algo
incompatível com os outros fatos que ela apresenta.
Essas evidências só
foram aparecer muito depois do inquérito. Os que acusavam Wainer nunca
conseguiram comprovar seu local de nascimento e ele acabou absolvido por
unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal. De todo modo, segundo a opinião da
biógrafa, o objetivo de toda essa inquisição era atingir Vargas.
“Outro dia o Celso Rocha
de Barros fez uma coluna em que falava que, se você quiser entender o
que é direita e esquerda no Brasil, a resposta é simples. Esquerda é o cara que
foi preso”, comenta Monteiro, em alusão ao caso Wainer. “Nunca se investigou
profundamente os outros barões de imprensa da época.”
Não é que o
jornalista fosse exatamente um bastião da esquerda. O interesse financeiro
sempre ajudou a balizar suas posições ideológicas, e o livro descreve como ele
também se aproximou de Juscelino Kubitschek quando o mineiro passou a ser o
dono do poder.
É injusto dizer,
contudo, que Wainer se vendia a causas, segundo a obra. “Seria mais preciso
dizer que trocava, quando a oferta era conveniente. Em termos ideológicos, ele
se mantinha naquele rumo, sempre à esquerda, e caso encontrasse alguém disposto
a financiar o avanço pela mesma estrada, por que não?”
A Última Hora foi
tão atacada, segundo Monteiro, por seu posicionamento declarado de membro único
da imprensa governista. O jornal constituiu, segundo a autora, uma voz
dissonante em meio a uma imprensa “hegemonicamente liberal e conservadora”,
ostentando uma “linha editorial trabalhista e nacionalista”.
“Com isso Wainer
desafiou dois pilares da imprensa”, diz. “Primeiro, quebrou o discurso único.
Segundo, desafiou a ideia do ponto de vista neutro. Sempre afirmou que jornal
tem lado e ele assumia o dele.”
“Quanto ao dinheiro
que financiou a sua aventura, atirasse a primeira pedra o dono de jornal que
não bebera das mesmas fontes”, acrescenta a autora, em referência aos
empréstimos públicos e investimentos de magnatas a que Wainer recorrera para
erguer seu diário —um valor que, convertido à moeda de hoje, alcança mais de R$
340 milhões.
O posto de
queridinho de Vargas, que fez crescer o público leitor e a poupança de Wainer,
foi moldado durante anos com uma cobertura que se esquivava de fazer qualquer
crítica ao ex-ditador. Mas surgiu de um espertíssimo furo, para usar um jargão
do ramo.
Em 1949, alguns
anos depois de ser apeado do governo com o fim do Estado Novo, Vargas andava
sumido, até que Wainer emplacou uma entrevista exclusiva que o reposicionaria
como candidato a voltar à Presidência —o que conseguiu, democraticamente, de
1951 até seu suicídio em 1954.
O jornalista foi o
único na imprensa que levou essa candidatura a sério por muito tempo, o que
garantiu a ele o apelido de “Profeta”, que Vargas usou naquele famoso bilhete.
Para conseguir
falar com Vargas, naquela ocasião, Wainer aterrissou de avião direto na fazenda
onde morava o gaúcho —que foi pego de surpresa, saindo de toalha do banho.
Em sua
autobiografia, o jornalista se gabava de ter conseguido a entrevista num
impulso, mudando a rota do avião particular em que embarcara, originalmente,
para fazer uma reportagem sobre plantações de trigo. Mas Monteiro conta que não
foi bem assim.
É verdade que
Vargas foi surpreendido pela chegada do repórter, mas a entrevista já estava
combinada, desde muito antes de a nave decolar, com sua filha e confidente
Alzira, que julgava que a exposição seria boa para o ex-ditador.
Wainer manteve a
versão de que o furo foi casual até quando ditou sua autobiografia, o best-seller
“Minha Razão de Viver”, pouco tempo antes de morrer, há 40 anos.
Naquele momento,
tinha passado seus jornais adiante e perdido boa parte da fortuna que
acumulara. Vivia de salário em uma casa modesta em São Paulo e mantinha neste
jornal uma de suas colunas mais lidas, na prestigiosa página dois.
“O que me encantava
muito era como ele se sentia vitorioso por ter tido aquela vida”, diz Marta
Góes, jornalista e dramaturga que colheu depoimentos de Wainer, à época, para a
autobiografia. “Embora, pelos padrões normais, ele tivesse fracassado. Perdeu
poder, dinheiro, sua cadeia de jornais. Pelo metro convencional, tinha sido
derrotado. Mas ele tinha um sentimento de muito orgulho pela vida que teve.”
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