domingo, 25 de outubro de 2020

SAMUEL WAINER - O HOMEM QUE ESTAVA LÁ

Walter Porto, Folha de S.Paulo

Biografia de Samuel Wainer conta como o jornalista se aproximou dos poderosos

SÃO PAULO No pior ano de sua vida, 1953, Samuel Wainer foi para a cadeia, teve sua intimidade devassada por uma Comissão Parlamentar de Inquérito, viu a tiragem do jornal Última Hora despencar, os anunciantes sumirem e seu maior protetor, o presidente Getúlio Vargas, se afastar.

Resolveu escrever à filha do mandatário, Alzira, lembrando os votos de “confiança e amizade” que o pai dedicara a ele e ameaçando virar a casaca e lutar contra o governo. Recebeu como resposta um bilhete do punho de Vargas. “Alzira, diga ao Profeta que no Brasil não há divórcio.”

O recado dá o tom da intimidade assombrosa que o jornalista cultivou com um dos líderes mais determinantes para os rumos do Brasil daquele século 20. Um casamento que foi alvo, aliás, de uma ira que também encontra poucos paralelos na história.

Foi por causa dessa ligação de Wainer com Vargas, segundo a biógrafa Karla Monteiro, que se instaurou uma CPI no Congresso numa época em que isso não era rotina.

A investigação queria perscrutar os favorecimentos que o periódico getulista Última Hora teria obtido dos cofres públicos —e comprovar as acusações, ventiladas pela oposição, de que Wainer não tinha nascido no Brasil e, conforme a Constituição, não poderia ser dono de jornal.

A volumosa biografia que Monteiro publica nesta semana não deixa qualquer margem para dúvida —Samuel Wainer era estrangeiro, tendo nascido numa região do leste europeu conhecida naquele momento como Bessarábia.

À época da inquisição parlamentar, toda a comunidade judaica em torno do jornalista fez um pacto para corroborar sua versão, de que tinha vindo ao mundo numa rua do bairro do Bom Retiro. Ninguém próximo a Wainer jamais quebrou essa narrativa.

Mas a biógrafa achou um depoimento da irmã dele, Bertha, nos arquivos do Museu da Imigração, detalhando a viagem de toda a família da Europa ao Brasil em 1921 —não se sabe com exatidão o ano de nascimento do jornalista, mas a melhor estimativa é algo em torno de 1912.

E o empenho em manter segredo era tamanho que, mesmo nesse depoimento ao museu em 1994, Bertha ainda se apressa em comentar que Wainer tinha nascido no Brasil, algo incompatível com os outros fatos que ela apresenta.

Essas evidências só foram aparecer muito depois do inquérito. Os que acusavam Wainer nunca conseguiram comprovar seu local de nascimento e ele acabou absolvido por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal. De todo modo, segundo a opinião da biógrafa, o objetivo de toda essa inquisição era atingir Vargas.

“Outro dia o Celso Rocha de Barros fez uma coluna em que falava que, se você quiser entender o que é direita e esquerda no Brasil, a resposta é simples. Esquerda é o cara que foi preso”, comenta Monteiro, em alusão ao caso Wainer. “Nunca se investigou profundamente os outros barões de imprensa da época.”

Não é que o jornalista fosse exatamente um bastião da esquerda. O interesse financeiro sempre ajudou a balizar suas posições ideológicas, e o livro descreve como ele também se aproximou de Juscelino Kubitschek quando o mineiro passou a ser o dono do poder.

É injusto dizer, contudo, que Wainer se vendia a causas, segundo a obra. “Seria mais preciso dizer que trocava, quando a oferta era conveniente. Em termos ideológicos, ele se mantinha naquele rumo, sempre à esquerda, e caso encontrasse alguém disposto a financiar o avanço pela mesma estrada, por que não?”

A Última Hora foi tão atacada, segundo Monteiro, por seu posicionamento declarado de membro único da imprensa governista. O jornal constituiu, segundo a autora, uma voz dissonante em meio a uma imprensa “hegemonicamente liberal e conservadora”, ostentando uma “linha editorial trabalhista e nacionalista”.

“Com isso Wainer desafiou dois pilares da imprensa”, diz. “Primeiro, quebrou o discurso único. Segundo, desafiou a ideia do ponto de vista neutro. Sempre afirmou que jornal tem lado e ele assumia o dele.”

“Quanto ao dinheiro que financiou a sua aventura, atirasse a primeira pedra o dono de jornal que não bebera das mesmas fontes”, acrescenta a autora, em referência aos empréstimos públicos e investimentos de magnatas a que Wainer recorrera para erguer seu diário —um valor que, convertido à moeda de hoje, alcança mais de R$ 340 milhões.

O posto de queridinho de Vargas, que fez crescer o público leitor e a poupança de Wainer, foi moldado durante anos com uma cobertura que se esquivava de fazer qualquer crítica ao ex-ditador. Mas surgiu de um espertíssimo furo, para usar um jargão do ramo.

Em 1949, alguns anos depois de ser apeado do governo com o fim do Estado Novo, Vargas andava sumido, até que Wainer emplacou uma entrevista exclusiva que o reposicionaria como candidato a voltar à Presidência —o que conseguiu, democraticamente, de 1951 até seu suicídio em 1954.

O jornalista foi o único na imprensa que levou essa candidatura a sério por muito tempo, o que garantiu a ele o apelido de “Profeta”, que Vargas usou naquele famoso bilhete.

Para conseguir falar com Vargas, naquela ocasião, Wainer aterrissou de avião direto na fazenda onde morava o gaúcho —que foi pego de surpresa, saindo de toalha do banho.

Em sua autobiografia, o jornalista se gabava de ter conseguido a entrevista num impulso, mudando a rota do avião particular em que embarcara, originalmente, para fazer uma reportagem sobre plantações de trigo. Mas Monteiro conta que não foi bem assim.

É verdade que Vargas foi surpreendido pela chegada do repórter, mas a entrevista já estava combinada, desde muito antes de a nave decolar, com sua filha e confidente Alzira, que julgava que a exposição seria boa para o ex-ditador.

Wainer manteve a versão de que o furo foi casual até quando ditou sua autobiografia, o best-seller “Minha Razão de Viver”, pouco tempo antes de morrer, há 40 anos.

Naquele momento, tinha passado seus jornais adiante e perdido boa parte da fortuna que acumulara. Vivia de salário em uma casa modesta em São Paulo e mantinha neste jornal uma de suas colunas mais lidas, na prestigiosa página dois.

“O que me encantava muito era como ele se sentia vitorioso por ter tido aquela vida”, diz Marta Góes, jornalista e dramaturga que colheu depoimentos de Wainer, à época, para a autobiografia. “Embora, pelos padrões normais, ele tivesse fracassado. Perdeu poder, dinheiro, sua cadeia de jornais. Pelo metro convencional, tinha sido derrotado. Mas ele tinha um sentimento de muito orgulho pela vida que teve.”

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário