terça-feira, 6 de outubro de 2020

TENHA MEDO

Editorial Folha de S.Paulo

Como não poderia deixar de ser, o mundo soube que Donald Trump deixaria o hospital no qual se tratava da Covid-19 por meio de uma postagem no Twitter. “Não tenha medo” da doença, recomendou.

Apesar de uma sentença seguinte sensata, afirmando que as pessoas não devem se deixar dominar pelo medo, o estrago estava feito.

O presidente americano, doente, coroa assim o seu trabalho neste ano de pandemia: com desleixo no trato da emergência sanitária e desprezo pela vida humana.

Seus macaqueadores mundo afora seguiram a mesma linha, como os brasileiros bem sabem com Jair Bolsonaro e seu negacionismo.

Trump, a acreditar nos conflitantes relatos acerca de sua saúde, passou por maus bocados no início de sua infecção —idoso e obeso, acabou no hospital.

Mesmo internado, manteve o culto personalista. Deixou-se fotografar e filmar trabalhando e, num ato criticado pelos próprios médicos da unidade médica militar onde estava, cumprimentou apoiadores num passeio de carro.

Os agentes secretos com Trump no veículo, que é lacrado para evitar a entrada de contaminantes, se arriscaram com um paciente no auge de seu período de infecção por um teatro político barato.

Pontual, a cena diz muito sobre a realidade da pandemia na mais poderosa nação da Terra. Mais de 20% dos mortos pelo patógeno são americanos, que representam 4,2% da população mundial —e há acima de 40 mil novos casos diários.

A menos de um mês da eleição presidencial, o impacto da doença de Trump sobre o eleitor ainda é incerto. As duas primeiras pesquisas de intenção de voto feitas após a revelação do contágio sugerem problemas para o republicano.

O democrata Joe Biden segue com uma liderança de 8 a 10 pontos, e os eleitores responsabilizaram Trump por sua infecção.

Se havia esperança de que a enfermidade traria empatia, até aqui o máximo angariado foi um indisfarçável “Schadenfreude” de críticos do presidente republicano.

Restará saber se esse sentimento de satisfação com o infortúnio alheio, reforçado pela atitude de Trump ante o vírus, irá contaminar de vez sua chance de ganhar terreno entre os indecisos e em estados-pêndulo do pleito.

No mês final da campanha de 2016, ele fez mais de 60 comícios, que o ajudaram a suplantar Hillary Clinton na reta de chegada.

Obviamente neste ano a intensidade seria menor pela própria pandemia. Mas, mesmo que se recupere, Trump terá perdido semanas vitais para tentar virar o jogo.

Se ao fim o presidente perder, não será pequena a ironia de que parte da culpa poderá ser atribuída ao vírus que ele tanto minimizou.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário