sábado, 31 de outubro de 2020

TRABALHO INFORMAL, GUILHOTINA E FOME

Luiz Guilherme Piva, Folha de S.Paulo

Vendedores, motoristas, operários, jardineiros, guardas-noturnos, babás, bilheteiras, faxineiros, baleiros e garçons integram o contingente de quase 40 milhões de pessoas no trabalho informal no Brasil, mais de 41% da população ocupada, recorde desde o início da pesquisa PNAD Contínua do IBGE, em 2016. Destes, 25 milhões são trabalhadores por conta própria, e 12 milhões, empregados sem carteira assinada.

Eles estão por todo lado: nas rodoviárias, nas motos, balançando nas construções, tocando sanfona, vendendo fumo e, na imensa maioria, vivendo na pobreza, somando-se aos mais de 12 milhões de desempregados e aos miseráveis que passam fome, tema que retomo adiante.

A existência desse contingente causa enorme perda de receita da Previdência —hoje, apenas 62,4% da população empregada é contribuinte do INSS— e reduz a renda, o consumo, a arrecadação de tributos, os investimentos, o crescimento e, ao fim, a geração de empregos, situação agravada pela política macroeconômica restritiva em curso há cinco anos. Além disso, dificulta o próprio enfrentamento de questões centrais.

Tome-se a reforma tributária: como incluir no sistema, com eficiência e justiça, esses milhões de brasileiros —que, aliás, dada a predominância da tributação indireta, já pagam, nos seus gastos básicos, proporcionalmente mais impostos do que os ricos? Igualmente as políticas de inovação e produtividade: com que mão de obra avançar nesses campos? E como reduzir o que muitos economistas criticam como gastos obrigatórios com saúde, educação e assistência? Talvez contando com a morte, de fome, de bala ou vício, da maioria dessas pessoas.

A adoção da reforma trabalhista, em 2017, no meio da maior recessão da nossa história moderna, certamente contribuiu para o desemprego e a informalidade. Buscava-se a primazia do negociado sobre o legislado, o que seria razoável se as partes em negociação estivessem em condições equiparáveis de interlocução. No meio da recessão, porém, o que se instalou foi a negociação do pescoço com a guilhotina. As cabeças seguem rolando.

Uma sugestão (a ser estudada) para incentivar a formalização da mão de obra e, de quebra, aumentar a arrecadação da Previdência, é estabelecer a contribuição previdenciária dos empregadores com base não no tamanho da folha de salários, mas numa razão (R) entre faturamento (ou valor agregado, ou lucro) no numerador e folha de salários formalizada no denominador. Quanto maior o R, maior a alíquota, numa curva discreta, com degraus suaves. Com isso, incentiva-se o emprego formal e diferenciam-se, na contribuição, os setores intensivos em capital dos intensivos em mão de obra.

Voltando à fome. Segundo o Ministério da Saúde, em média 15 pessoas morrem de fome por dia no Brasil; quase 6.000 por ano. Estudo da FAO contabiliza 5 milhões de brasileiros desnutridos. Para o IBGE, ao menos 15 milhões vivem em situação grave ou moderada de insegurança alimentar.

Crianças com até cinco anos são 10% desse montante. São justamente essas crianças que comem luz que, se não desencarnam, acabarão integrando o contingente dos brasileiros desempregados ou submetidos a trabalhos e empregos precários das estatísticas que abrem este artigo. Mas ninguém pergunta de onde essa gente vem.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

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