Há 45 anos,
Vladimir Herzog era torturado e assassinado pela ditadura militar brasileira
Vladimir acordou
mais cedo que de costume no sábado, 25 de outubro de 1975. Fez a barba, tomou
banho e se despediu da mulher Clarice, ainda na cama, com um beijo. Ela quis se
levantar e preparar o café, ele disse para não se preocupar, que no caminho
pararia em um bar e tomaria café com leite.
Vlado chegou
ao número 1.030 da rua Tomás Carvalhal, no bairro do Paraíso, em São Paulo,
perto das 9h. No prédio de muros altos guardados por sentinelas armados, onde
funcionava o Destacamento de Operações Internas - Comando Operacional de
Informações do 2º Exército, o DOI-CODI, Vlado entrou pela porta da frente.
Disse ao atendente seu nome completo, sua profissão e o número de seu RG.
Informou que na
noite anterior, por volta das 21h30, dois homens que se identificaram como
agentes de segurança do Exército o tinham procurado na TV Cultura, onde
trabalhava, e que, para não ser detido, se comprometera a se apresentar ali no
dia seguinte. E assim o fizera.
Depois disso se pôs
a esperar, sentado em um dos bancos de madeira que margeavam o largo corredor
que levava a uma porta fechada de aço e vidro. Minutos depois, quando foi
levado para interrogatório, ele permanecia tranquilo.
O Brasil de 1975
não parecia ser um lugar em que um jornalista com emprego fixo e endereço
conhecido, casado e pai de dois filhos, devesse se preocupar com a própria segurança.
Mas era. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumira a presidência com
a promessa de promover a abertura do regime ditatorial.
A palavra usada na
época era “distensão” e significava aliviar a censura, investigar denúncias
de tortura e aumentar a participação da sociedade civil
na política. A ditadura light de Geisel, porém, encontrou duas
contrariedades. Primeiro a derrota do partido do governo, a Arena, nas eleições
para a Câmara e o Senado. Em novembro, o oposicionista MDB fizera 16 dos 22
senadores e 160 das 364 cadeiras da Câmara. Depois, o impacto da crise do
petróleo, que colocava fim aos anos do milagre, quando a economia brasileira
cresceu mais de 5% ao ano.
Nos bastidores da
política dominada pelos quartéis, esse cenário despertou o medo da chamada
linha dura do regime. Gente que via qualquer oposição como subversão e que
combatia qualquer subversão com violência, tortura e assassinato. Gente que se
apoiava no CIE – Centro de Inteligência do Exército – e encontrava nos DOIs
espalhados pelo país guarida para atividades ilegais e violentas.
Gente que preferia
o inferno à “distensão” e ao que ela representava. Em menor ou maior grau, essa
gente viveu nos porões da ditadura e, dependendo da ocasião e do apoio
oportunista de políticos e militares às suas práticas, teve menor ou maior
influência sobre o governo.
Foi maior entre
1969 e 1973, depois da publicação do AI-5, quando o combate ao terrorismo e
focos de guerrilha os alçaram à linha de frente do regime. Foi menor em 1974,
quando Geisel assumiu. Entre outubro de 1969 e dezembro de 1973, 2 mil pessoas
passaram pelo DOI-CODI em São Paulo: 502 reclamaram de tortura e pelo menos 40
foram assassinadas. Em 1974, apenas uma foi presa.
Em 1975, porém, a
repressão estava de volta. “Sem terroristas para caçar e com o guerrilha do
Araguaia devolvida ao silêncio da floresta, o Centro de Informações do Exército
avançou contra o Partido Comunista”, diz o jornalista Elio Gaspari, autor de A Ditadura
Encurralada. Em 13 de janeiro o CIE invadiu a gráfica da Voz Operária, o jornal
do partido, que operava na clandestinidade, num sítio no Rio de Janeiro.
No dia seguinte,
Elson Costa, um dos responsáveis pela gráfica e dirigente do PCB, desapareceu.
Foi morto numa casa mantida pelo CIE na periferia de São Paulo, segundo
testemunho do sargento Marival Chaves Dias do Canto à revista Veja, em 1992.
Entre janeiro e julho, pelo menos 500 membros do partido foram identificados,
200 foram presos e pelo menos 14 morreram.
Em outubro, nova
onda de prisões: 61 pessoas foram detidas. A intenção era demonstrar a tese do
CIE de que o PCB havia se infiltrado no MDB, na imprensa e até no governo. Essa
última acusação era, inclusive, foco das desavenças entre o comandante do 2º
Exército, o general Ednardo D’Avila Mello, e o governador do Estado, Paulo
Egydio Martins.
Aos 38 anos, Herzog
assumira, em setembro, a diretoria de jornalismo da Cultura, emissora do
governo. Era militante comunista, mas não desenvolvia atividade
clandestina e sua participação se limitava a ir a reuniões. Em sua direção,
porém, confluíam três crises, todas regadas de ódio. “Uma era o choque da linha
dura com Geisel. Outra, a caçada ao PCB. A terceira era o conflito entre o
general Ednardo e o governador Paulo Egydio. A prisão de Vlado servia a todas”,
diz Gaspari.
Tortura e morte
Antes de ser preso,
em 17 de outubro, Paulo Markun, também jornalista da Cultura, conseguiu mandar
um recado aos colegas, indicando quem seriam os próximos. Anthony de Cristo,
George Duque Estrada e Rodolfo Konder foram presos antes de serem alertados.
Fernando Morais conseguiu escapar. Vladimir foi avisado, mas não quis fugir.
Depois que entrou
no DOI, Vlado trocou de roupa e vestiu o macacão dos presos. Ainda pela manhã,
foi acareado com dois presos. Com as cabeças cobertas por capuzes de feltro
preto, eles não podiam se ver. Mas um deles, Konder, reconheceu o amigo:
“Empurrei a borda do pano e vi o preso que chegava. Eu o reconheci pelos
sapatos: eram os mocassins pretos que Vlado usava.”
Nessa hora, Vlado
negou que pertencesse ao PCB e Konder e o outro preso foram retirados para um
corredor, de onde ouviram os gritos de Vlado e a ordem para que fosse trazida a
máquina de choques elétricos. “Os gritos duraram até o fim da manhã. Os choques
eram tão violentos que faziam Vlado urrar de dor”, diz Konder. Um rádio foi
ligado em alto volume para abafar os sons. Meia hora depois, por volta das 11h,
Vlado foi para a sala de interrogatórios.
“Mais ou menos uma
hora depois, me levaram a outra sala onde pude retirar o capuz e ver o Vlado. O
interrogador, um homem de uns 35 anos, magro, musculoso, com uma tatuagem de
âncora no braço, mandou que eu dissesse a ele que não adiantava resistir”, lembra
Konder. Vlado estava com o capuz enfiado na cabeça, trêmulo, abatido, nervoso.
Sua voz estava por um fio.
“Fui obrigado a
ajudá-lo a redigir uma confissão que dizia que ele tinha sido aliciado por mim
para entrar no PCB e listava outras pessoas que integrariam o partido.” Konder
foi levado e os gritos recomeçaram. Essa foi a última vez que Vlado foi visto e
ouvido. “No meio da tarde, fez-se silêncio na carceragem”, diz George Duque
Estrada que também estava preso no DOI, em relato no livro Dossiê Herzog –
Prisão, Tortura e Morte, de Fernando Pacheco Jordão.
Às 22h08 a Agência
Central do SNI, em Brasília, recebeu uma mensagem: “Info que hoje, dia 25 out,
cerca de 15 hs, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II
Exército”. Seria o 38º suicida, o 18º a se enforcar e, de acordo com o Laudo de
Encontro de Cadáver, emitido pela Polícia Técnica de São Paulo, teria feito
isso com uma tira de pano. Herzog teria se amarrado pelo pescoço numa grade a
1,63 metro do chão. Sem espaço para que seu corpo pendesse, teria ficado com os
pés no chão e as pernas curvadas, como mostrava a foto anexada ao laudo.
Segundo comunicado
do comandante do DOI, a tira de pano era a “cinta do macacão que o preso
usava”. Os macacões do DOI não tinham cinto. “Suicídios desse tipo são
possíveis, porém raros. No porão da ditadura, tornaram-se comuns, maioria até.
O último, em São Paulo, acontecera cerca de um mês antes, na mesma cela. Dos 17
casos anteriores de suicídio por enforcamento, oito não tiveram vão livre. Em
dois, os presos teriam morrido sentados”, diz Gaspari.
O morto fala
Sem notícias do
marido desde a manhã, Clarice estava preocupada. Por volta das 23h bateu à sua
porta um grupo de diretores e funcionários da Cultura. Entraram calados,
sentaram-se na sala e disseram-lhe que as coisas se complicaram. “Mataram o
Vlado!”, ela teria dito, segundo seu relato no livro Vlado, de Paulo Markun.
“Eles me falaram que Vlado estava morto e que fora suicídio. Senti ódio. E uma
grande impotência.”
“Eles mataram o
Vlado”, disse o amigo e jornalista Fernando Pacheco Jordão, autor de Dossiê
Herzog, em telefonema para Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos
Jornalistas. Era quase 1 da manhã e Jordão ainda daria muitos telefonemas na
madrugada. “Mataram o Vlado”, repetiu a dom Paulo Evaristo Arns. “Não sei se já
não é hora de um protesto mais forte. Quem sabe sair pelas ruas”, respondeu o
cardeal.
O jornalista Mino
Carta, na época diretor da revista Veja, foi um dos primeiros a chegar à casa
dos Herzog. Ele vinha de Santos, onde estivera justamente para pedir a ajuda do
secretário de Segurança do Estado, Erasmo Dias, no caso das prisões dos
colegas. Segundo depoimento a Paulo Markun, no livro Vlado, Mino ligou para o
coronel Golbery do Couto e Silva, ministro da Casa Civil. “Vá ao Paulo Egydio”,
teria dito o “feiticeiro”, como era conhecido por sua intimidade quase mágica
com o poder.
Golbery lhe disse,
ainda, que aquilo, a morte de Vlado, era uma tentativa de golpe contra Geisel.
Mino seguiu o conselho e procurou o governador Paulo Egydio, no Palácio dos
Bandeirantes. Quando saiu, o governador chorava.
Desde a morte do
ex-deputado Rubens Paiva, num quartel da Polícia do Exército no Rio, em 1971,
era a primeira vez que morria no porão da ditadura alguém da elite, com vida
profissional legal e atividade política praticamente nula. “Horas depois da
morte de Herzog começou um daqueles processos em que reações individuais e
desarticuladas desembocam em comportamentos que, sem coordenação ou
planejamento, constroem os fatos históricos”, diz Gaspari.
Mas o DOI tinha sua
própria estratégia para lidar com o assunto. O corpo de Herzog foi entregue à
Polícia Técnica e levado ao Instituto Médico Legal, onde chegou sem a roupa com
que fora fotografado, mas com os próprios trajes. O laudo do exame de corpo de
delito, assinado pelos médicos Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana, do IML,
concluiu: “quadro médico legal clássico de asfixia mecânica por enforcamento”.
Ainda na noite de sábado, o corpo foi enviado ao Hospital Albert Einstein.
Estava tudo pronto para mais um sepultamento típico de mortes ocorridas nas
dependências das Forças Armadas, durante a ditadura: rápidos e discretos.
Clarice não quis
assim. Para que houvesse velório, ela marcou o enterro para a segunda. No
domingo, cerca de 600 pessoas foram à cerimônia, entre eles o cardeal Arns e o
senador Franco Montoro. “Era a primeira vez que um arcebispo e um senador da
República velavam um morto do regime”, diz Gaspari. “Formou-se uma grande
frente e, na segunda, todos estavam mobilizados pela morte de Herzog.”
No cemitério
israelita do Butantã, os responsáveis pelo funeral apressaram tanto a cerimônia
que dona Zora, mãe de Vlado, não chegou a tempo de se despedir do filho, viu
apenas quando jogavam terra por cima do caixão. Quatro jornalistas que estavam
presos no DOI-CODI foram levados até o local. Konder foi um deles: “Não
deixaram a gente se trocar, me levaram com roupas sujas de urina, sangue e
fezes. Foi assim que assisti ao enterro de meu amigo.”
“Senhor Deus dos
Desgraçados, / Dizei-me Vós, Senhor Deus / Se é mentira, se é verdade, / Tanto
horror perante os céus.” Depois de ler o trecho de Navio Negreiro, de Castro
Alves, Audálio Dantas fez correr entre os presentes outro verso: “Reunião no
sindicato”.
Ação e reação
“Se a tigrada
quisera desmantelar o PCB, já o conseguira. Se queria outra coisa, era outra
coisa que queria”, afirma Elio Gaspari. Pelo menos uma pessoa achou, assim que
Vlado morreu, que era “outra coisa”: o presidente Geisel.
Ele só soube da
morte de Herzog no domingo. Na segunda, em visita ao Rio, não tratou do assunto
e parecia ter assimilado o golpe. Mas a linha dura queria mais. Na manhã de
quarta, dia 29, o general Sylvio Frota, ministro do Exército, ligou para o
ministro da Justiça, Armando Falcão. Falcão relata o telefonema em seu livro
Tudo a Declarar.
“O senador do
Paraná, Leite Chaves, disse no Congresso que o suicídio do jornalista Vladimir
Herzog não passa de ‘um crime ignominioso’. Estou reunido com o Alto-Comando e
ninguém aceita o insulto. Queremos uma reparação imediata.” Era a “outra coisa
que queriam”. Queriam atacar o Congresso, provocar cassações e, por tabela,
jogar areia no projeto de distensão de Geisel.
Nas ruas de São
Paulo, o clima era outro. Ainda na segunda-feira, cerca de 30 mil estudantes da
USP, PUC e Fundação Getúlio Vargas entraram em greve. A garotada queria marchar
pela cidade, mas aguardava a reunião com os jornalistas. Juntos, aprovaram a
realização de um ato religioso pela memória de Vlado na sexta, dia 31. O
cardeal Arns tomou a iniciativa: ofereceu a catedral da Sé e disse que estaria
lá.
Na quarta-feira,
Geisel mandou chamar Frota. Há duas versões parecidas para a conversa dos dois
generais. Uma narrada pelo presidente ao seu secretário Heitor Ferreira e
relatada por Gaspari em A Ditadura Encurralada. “Vocês escolham lá um
presidente e venham me substituir”, teria dito. A outra foi narrada por Frota a
Falcão e reproduzida em Tudo a Declarar: “O presidente me disse que se
quisessem insistir no caso tratassem de ir arranjando outro para colocar em seu
lugar”. A ameaça encostou Frota na parede. O ministro recuou.
Até o fim da
semana, os dois lados temeram que o outro reagisse e fosse para a rua. Em
Brasília temia-se que os universitários promovessem passeatas. Em São Paulo, o
medo era de que o regime proibisse a manifestação. Geisel foi a São Paulo na
quinta e se hospedou no Palácio dos Bandeirantes, onde se reuniu com os chefes
militares do Estado. Para começo de conversa, perguntou ao general Ednardo
sobre o Inquérito Policial Militar a respeito da morte de Herzog.
Não fora instalado,
porque o ministro Frota determinara que não fosse. Pois seria. Embora não se
destinasse a apurar as causas da morte de Vlado, mas “as circunstâncias em que
ocorreu o suicídio do jornalista”, a instauração do IPM já era uma derrota para
Ednardo, Frota e a turma do porão.
“À noite, o
governador promoveu uma festa em homenagem a Geisel. Entre os 1500 convidados
estava a bancada oposicionista, até o deputado Alberto Goldman, líder do
partido na Assembléia e militante do PCB”, diz Gaspari. Goldman relata a rápida
conversa que teve com o presidente em seu livro Caminhos de Luta. “Presidente,
o MDB está apreensivo com o que vem acontecendo em São Paulo, quanto ao
respeito dos direitos humanos”, disse o deputado. “Não pensem que eu não
entendo o significado de suas presenças aqui, neste momento”, respondeu o
general.
No dia seguinte, o
povo estava na rua e fazia a primeira manifestação contra a ditadura após o
AI-5. Um pouco antes da hora do culto, dois secretários do governador ainda
procuraram o arcebispo de São Paulo e lhe pediram para cancelar o evento. “Fui
informado que existiriam mais de 500 policiais na praça com ordem de atirar ao
primeiro grito. Se houvesse protestos, eles metralhariam a população”, lembra
dom Paulo.
A estratégia dos
manifestantes era chegar à praça em pequenos grupos, evitando aglomerações. Cerca
de 8 mil pessoas se espalharam pelas escadarias da Sé. As que conseguiram
entrar viram o cardeal, o rabino Henry Sobel e mais 20 sacerdotes, entre eles
dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife.
“Ninguém toca
impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus para ser fonte de amor”,
disse dom Paulo. “Nas minhas dores, ó Senhor, fica ao meu lado”, respondeu a
audiência.
Para Elio Gaspari,
naquela tarde de 31 de outubro de 1975, a oposição brasileira passou a encarnar
a ordem e a decência. “A ditadura, com sua ‘tigrada’ e seu aparato policial,
revelara-se um anacronismo que procurava na anarquia um pretexto para a própria
reafirmação.”
Saiba mais sobre
a trajetória de Vladimir Herzog:
1. A Ditadura
Encurralada, de Elio Gaspari (2004) - https://amzn.to/31JPtNt
2. Dossiê
Herzog, Fernando Pacheco Jordão, de Global (1979) - https://amzn.to/2PhpPNb
3. Tudo a
Declarar, Armando Falcão, Nova Fronteira (1989) - https://amzn.to/31JfVXh
*Texto publicano em
25 de outubro de 2019, reproduzido hoje neste Blog
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