Mesmo que Joe Biden ganhe a eleição, o fato que se sobrepõe
é que os poderosos Estados Unidos são uma nação aterrorizada pelo medo. Há
diversas explicações para os milhões de votos dados a Donald Trump, o mais
antidemocrático presidente americano de todos os tempos, mas o fantasma do
radicalismo de esquerda é de longe o fator mais importante. Uma parcela
gigantesca da população acreditou e segue acreditando na acusação de Trump de
que Biden e os democratas são perigosos socialistas. Uma bobagem sem tamanho.
Nas questões econômicas, os democratas estão mesmo à direita dos republicanos.
Ainda assim, o discurso de que políticas socialistas dos
democratas mudariam a cara dos EUA se Biden ganhasse conquistou número
astronômico de eleitores. O avanço de Trump sobre os votos hispânicos,
tradicionalmente democratas, ajuda a explicar esse medo. Trump disse ao longo
da campanha, e mesmo antes dela, que os democratas abririam as fronteiras.
Mentira. Mas, se fosse verdade, poderia se supor que seria uma boa novidade,
porque enfim os imigrantes se reuniriam com familiares que ficaram para trás.
Nada disso. Mais de 75% dos hispano-americanos nasceram nos EUA, seus círculos
familiares e pessoais estão lá assentados, e uma abertura ampla para imigração
ameaçaria diretamente seu posto de trabalho.
Deve-se considerar também que os hispânicos são religiosos e
conservadores. Na Flórida, onde Biden perdeu, os cubano-americanos lideram a
comunidade e extravasam seu ódio ao comunismo desde 1960, quando Fidel Castro
tomou o poder em Cuba. Nos últimos 20 anos, um grande contingente de
venezuelanos imigrou para o estado americano, fugindo da política de Chávez e
Maduro, e trouxe na bagagem o mesmo espírito. Além disso, ao redor dos Estados
Unidos, o medo do desarranjo econômico que os “esquerdistas radicais” poderiam
produzir também impulsionou a campanha de Trump.
Apesar de a economia americana ter sofrido um impacto enorme
com o coronavírus, como de resto o mundo inteiro, americanos médios que
acreditam na retórica de Trump tremem de pavor só em pensar que a situação pode
se degradar ainda mais sob o comando dos “radicais” democratas. A aposta de que
a economia poderia definir uma eleição e o slogan “America First” (América em
primeiro lugar) mais uma vez acalentaram corações assustados.
A verdade, até este ponto da apuração, é que os votos no
presidente que busca a reeleição surpreenderam os republicanos e frustraram os
democratas. Todos, uns efusivos e outros calados, esperavam uma vitória clara e
incontestável de Joe Biden. O que se vê, mesmo que as projeções estejam certas
e ocorra uma vitória democrata, é que as pesquisas mais uma vez erraram. A
eleição que se esperava dar com uma vantagem categórica pode acabar nos
tribunais.
A diferença entre a expectativa e o resultado que emergiu
das urnas, que também se explica pelo medo, tem um outro componente, visto
reiteradamente em eleições ao redor do mundo. As pessoas mentem aos pesquisadores
por vergonha, sobretudo numa eleição como esta, inflamada pelo descaso do
presidente com o coronavírus e pela campanha “Vidas negras importam”. Muitos
dos que queriam manter Trump na Casa Branca por razões genuinamente políticas
podem ter se sentido constrangidos em apontar corretamente seu voto. Poderiam
parecer negacionistas ou, pior, aliados dos supremacistas brancos.
Claro que os Estados Unidos saem desta eleição mais
divididos do que nunca. Isso já foi dito pelos analistas, desnecessário acrescentar
qualquer coisa. Mas é importante ressaltar que a chance de se reconstruirem
pontes é muito mais provável se Biden for o eleito. O democrata é um
conciliador pragmático que saberá desobstruir canais e aproximar opostos em
torno de objetivos comuns. Esse é seu perfil. O contrário, a reeleição de
Trump, seria mais do que a manutenção do estado de beligerância interna, seria
seu aprofundamento. Nesse caso, nada mais atual que o velho provérbio
americano: “A única coisa que se aprende em uma nova eleição é que não
aprendemos nada com a última”.
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