quinta-feira, 5 de novembro de 2020

FRUSTRAÇÃO, VERGONHA E MEDO

Ascânio Seleme, O GLOBO

Mesmo que Joe Biden ganhe a eleição, o fato que se sobrepõe é que os poderosos Estados Unidos são uma nação aterrorizada pelo medo. Há diversas explicações para os milhões de votos dados a Donald Trump, o mais antidemocrático presidente americano de todos os tempos, mas o fantasma do radicalismo de esquerda é de longe o fator mais importante. Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando na acusação de Trump de que Biden e os democratas são perigosos socialistas. Uma bobagem sem tamanho. Nas questões econômicas, os democratas estão mesmo à direita dos republicanos.

Ainda assim, o discurso de que políticas socialistas dos democratas mudariam a cara dos EUA se Biden ganhasse conquistou número astronômico de eleitores. O avanço de Trump sobre os votos hispânicos, tradicionalmente democratas, ajuda a explicar esse medo. Trump disse ao longo da campanha, e mesmo antes dela, que os democratas abririam as fronteiras. Mentira. Mas, se fosse verdade, poderia se supor que seria uma boa novidade, porque enfim os imigrantes se reuniriam com familiares que ficaram para trás. Nada disso. Mais de 75% dos hispano-americanos nasceram nos EUA, seus círculos familiares e pessoais estão lá assentados, e uma abertura ampla para imigração ameaçaria diretamente seu posto de trabalho.

Deve-se considerar também que os hispânicos são religiosos e conservadores. Na Flórida, onde Biden perdeu, os cubano-americanos lideram a comunidade e extravasam seu ódio ao comunismo desde 1960, quando Fidel Castro tomou o poder em Cuba. Nos últimos 20 anos, um grande contingente de venezuelanos imigrou para o estado americano, fugindo da política de Chávez e Maduro, e trouxe na bagagem o mesmo espírito. Além disso, ao redor dos Estados Unidos, o medo do desarranjo econômico que os “esquerdistas radicais” poderiam produzir também impulsionou a campanha de Trump.

Apesar de a economia americana ter sofrido um impacto enorme com o coronavírus, como de resto o mundo inteiro, americanos médios que acreditam na retórica de Trump tremem de pavor só em pensar que a situação pode se degradar ainda mais sob o comando dos “radicais” democratas. A aposta de que a economia poderia definir uma eleição e o slogan “America First” (América em primeiro lugar) mais uma vez acalentaram corações assustados.

A verdade, até este ponto da apuração, é que os votos no presidente que busca a reeleição surpreenderam os republicanos e frustraram os democratas. Todos, uns efusivos e outros calados, esperavam uma vitória clara e incontestável de Joe Biden. O que se vê, mesmo que as projeções estejam certas e ocorra uma vitória democrata, é que as pesquisas mais uma vez erraram. A eleição que se esperava dar com uma vantagem categórica pode acabar nos tribunais.

A diferença entre a expectativa e o resultado que emergiu das urnas, que também se explica pelo medo, tem um outro componente, visto reiteradamente em eleições ao redor do mundo. As pessoas mentem aos pesquisadores por vergonha, sobretudo numa eleição como esta, inflamada pelo descaso do presidente com o coronavírus e pela campanha “Vidas negras importam”. Muitos dos que queriam manter Trump na Casa Branca por razões genuinamente políticas podem ter se sentido constrangidos em apontar corretamente seu voto. Poderiam parecer negacionistas ou, pior, aliados dos supremacistas brancos.

Claro que os Estados Unidos saem desta eleição mais divididos do que nunca. Isso já foi dito pelos analistas, desnecessário acrescentar qualquer coisa. Mas é importante ressaltar que a chance de se reconstruirem pontes é muito mais provável se Biden for o eleito. O democrata é um conciliador pragmático que saberá desobstruir canais e aproximar opostos em torno de objetivos comuns. Esse é seu perfil. O contrário, a reeleição de Trump, seria mais do que a manutenção do estado de beligerância interna, seria seu aprofundamento. Nesse caso, nada mais atual que o velho provérbio americano: “A única coisa que se aprende em uma nova eleição é que não aprendemos nada com a última”.

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