O embate entre o capitão da caneta Bic e o general de Exército
com ordem de comando marca uma nova etapa na relação do presidente Jair
Bolsonaro não só com o vice-presidente Hamilton Mourão, mas com as Forças
Armadas. A unanimidade aparente ruiu, a insatisfação silenciosa emergiu e o
momento é de avaliação de danos, ou de contagem de votos para um lado e para
outro.
Sem noção da gravidade na saúde, na economia, no ambiente,
na política, o presidente acha que pode falar e fazer o que lhe vai pela
cachola, trocando a responsabilidade do cargo pelo oba-oba de uma campanha
extemporânea, divertindo-se com a “boiolagem” cor-de-rosa do Guaraná Jesus,
humilhando o general da Saúde, tirando o gás do ministro da Economia e
guerreando contra a “vacina do Dória”.
É puro non-sense, mas Bolsonaro vai comprando lealdade com
cargos e camaradagem. Qual um paizão às antigas, grita e dá umas palmadas,
fingindo não ver a safadeza do caçula com o mais velho, mas resolve tudo
bajulando o ofendido. A vítima dá um sorrisinho e cede: “um manda, o outro
obedece”. Pergunte-se a Paulo Guedes e aos generais Luiz Eduardo Ramos, Augusto
Heleno e Eduardo Pazuello e todos reagem com um sorriso condescendente: “o
presidente é assim mesmo, diz tudo na bucha, mas gosta muito de mim”.
O passo seguinte é descrever uma situação em que Bolsonaro,
depois de mais uma bordoada, fez uma gracinha e alisou o ego do subordinado
diante de um microfone. Pazuello teve direito a vídeo no leito da covid, Ramos
foi paparicado com passeio de moto e num discurso em que foi tratado como “meu
amigão”, não Secretário de Governo e articulador político. Comovido, deixou pra
lá o “Maria Fofoca” disparado por Ricardo Salles.
Desanimado, mas tentando demonstrar o contrário, Guedes tem
definido o governo como um forte apache cercado de índios e flechas, mas com
todo mundo dentro guerreando entre si. Ele não diz, mas isso só ocorre em forte
apache em que o comandante não comanda e soldados fazem o que querem. Um dado
relevante no incômodo crescente do oficialato é a desenvoltura que Bolsonaro
confere à tal “ala ideológica” dos filhos, Salles e os Weintraub que pululam no
governo. O próprio, demitido da Educação, foi curtir a vida nos States,
ganhando em dólar no Banco Mundial.
Em sequência, Bolsonaro disse que não vai comprar a “vacina
da China” e desautorizou o anúncio feito por Pazuello aos governadores e ao
País, Salles atacou Ramos como “Maria Fofoca” e o presidente da Câmara como
“Nhonho”, até que o general e ex-porta-voz Otávio do Rêgo Barros alertou em
artigo que o poder “inebria, corrompe e destrói” e que líderes não podem ficar
reféns de “comentários babões” e “demonstrações alucinadas”.
Na contabilidade do Planalto, 90% dos militares ficaram
irritados com Rêgo Barros. Nos corredores militares, a avaliação é diferente,
com muitos aliviados por alguém, enfim, sair da toca para reforçar o general
Santos Cruz e dizer o que precisava ser dito. A diferença é que, nos palácios,
dizem o que os poderosos querem ouvir. Nos bastidores, é mais fácil ser
sincero.
No fim, Mourão firmou sua independência (ou descolamento),
desdenhando da briga política com o governador de São Paulo, falando
pragmaticamente sobre a China e desdizendo o presidente: “O governo vai comprar
a vacina, lógico que vai”. A reação de Bolsonaro foi de confronto: “A caneta
Bic é minha”. A guerra está só começando.
O desconforto bate nas Forças Armadas, Itamaraty, várias
áreas de governo e da sociedade, com reflexo no Congresso, onde nada anda e há
um risco real: chegar a 2021 sem Orçamento aprovado. O Forte Apache precisa de
um chacoalhão. Assim como o Posto Ipiranga está perdendo gás, a caneta BIC
também pode perder a tinta.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do
Telejornal Globonews em Pauta
Nenhum comentário:
Postar um comentário