Com a redemocratização, conheci alguns generais. Um deles
visitava nossa casa para alegria das crianças. Era o bisavô das meninas, já nos
últimos anos de vida. Serviu no Brasil profundo, tinha memórias de índios e do
mato.
Um dia ele me contou que o médico íntimo dele, antes de
operá-lo, aplicou a anestesia e perguntou: “Quer dizer que o senhor é o general
da banda?” Ele tentou responder, mas dormiu com um sorriso nos lábios.
“General da banda” é uma canção antiga, regravada por Astrud
Gilberto, que dizia: “Chegou o general da banda, eh eh/ Chegou o general da
banda eh ah”. Era possível brincar com um velho general. Mas seria impensável
desrespeitá-lo.
Quando leio nos jornais que há um plano para humilhar
generais, minha reação inicial é esta: um general não se deixa humilhar.
Mas, ao longo destes anos compreendi também que, assim como
nos outros ofícios, há diferenças entre as pessoas. Nem todas se comportam da
mesma maneira. Há generais que entraram no governo pensando num trabalho sério.
Santos Cruz foi golpeado por intrigas. Saiu e hoje é um crítico sensato dos
descaminhos de Bolsonaro.
Rêgo Barros foi um dos generais que conheci, como
jornalista. Era a interface com o Exército, coordenava a comunicação. Fui
visitá-lo algumas vezes no Forte Apache, na tarefa de preparar programas de TV
sobre algumas ações militares que me interessavam.
Ele se tornou porta-voz de Bolsonaro, foi destituído e vejo
que estava certo ao manter meu interesse por ele. Percebeu a vulgaridade e o
delírio de poder de Bolsonaro e segue seu caminho.
Infelizmente, nem todos se comportam assim. Tive poucos
contatos com o general Heleno. O primeiro foi no Haiti, quando ele comandava a
força da ONU. O segundo, na Amazônia; chegamos a viajar juntos para as terras
ianomâmi. Heleno teve uma curta passagem como comentarista de TV, na Band,
analisava segurança pública.
Sua trajetória é de adesão total ao projeto Bolsonaro. Ao
colocar Abin e GSI na busca de uma defesa para as trapalhadas de Flávio, ele se
revelou um samurai da família Bolsonaro.
Mergulhou tão rancorosamente no passado que manda espiões
para encontros internacionais que tratam do tema essencial para o futuro do
Brasil: o meio ambiente.
Trajetória estranha também é a do general Pazuello, a quem
não conheci pessoalmente, apesar de ter visitado as instalações da Operação
Acolhida em Roraima. Pazuello foi desautorizado publicamente por Bolsonaro, em
seguida posou ao lado do presidente e disse simplesmente: “Um manda, e o outro
obedece”.
Espontaneamente, ele igualou suas funções à de um varredor
da porta do quartel. E nos deu uma antevisão da situação calamitosa da saúde no
Brasil: ele simplesmente obedece a Bolsonaro, uma das pessoas mais obtusas
nesse campo, para não falar de vários outros.
Como se não bastasse tudo isso, o ministro Ricardo Salles
chama o general Ramos de Maria Fofoca nas redes sociais, e nada acontece com
ele.
Alguns analistas acham que Bolsonaro tem prazer em humilhar
generais, para compensar seu fracasso no Exército. Não me interessa tanto o
lado psicológico. O mais importante para mim é lembrar que a humilhação de
generais repercute no respeito ou desprezo que as pessoas têm pelas Forças
Armadas.
O desprezo pelas Forças Armadas, por sua vez, repercute na
política de segurança nacional. Não é possível que, por um dinheirinho a mais
os militares, ocupem um governo destruidor e incapaz e ameacem com isso sua
função constitucional específica.
Não precisamos de Forças Armadas para derrubar essas
aberrações momentâneas. Nos Estados Unidos, Trump pode ir para o espaço com as
eleições. Derrotaremos Bolsonaro e quantos militares estiveram ao seu lado. Não
é esse o problema.
O que faremos com a vitória se o sentimento elementar de
honra abandonar nossas Forças Armadas?
Uma das consequências mais nefastas do governo Bolsonaro foi
ter comprometido as Forças Armadas. Todo o trabalho de recomposição no período
democrático pode estar se perdendo, de alguma forma.
Não há presos políticos nem tortura, é verdade. Mas os
problemas são de outra natureza, as consciências despertas para novas
realidades. Um pobre general abraçado à cloroquina, espionando encontros
internacionais, sendo chamado de Maria Fofoca — tudo isso é demonstração de que
a insanidade sentou praça.
Artigo publicado no jornal O Globo em 02/11/2020
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