Arte: Paula Plin
Cleonice Gonçalves, 63, fazia seu trajeto habitual de 120
quilômetros, do trabalho na zona sul do Rio até sua casa, em Miguel Pereira,
sofrendo um intenso mal-estar. Estava com febre. De segunda a quarta-feira,
dormia no emprego. A patroa tinha voltado da Itália. Diabética e hipertensa,
Cleonice não resistiu. Foi a primeira
vítima de Covid-19 no Rio de Janeiro.
Não é preciso usar o termo "doméstica" para
conseguir visualizar o trabalho de Cleonice.
O trabalho doméstico no Brasil tem cor, classe e gênero.
Entre as 6 milhões de pessoas que executam tarefas de limpeza e manutenção na
casa alheia, 92% são mulheres. A maior parte (63%) é negra. Menos de um terço
tem carteira assinada. O
número de trabalhadoras domésticas sem carteira assinada e mais velhas vem
aumentando no país. Nos últimos meses, segundo a Pnad Covid, pelo
menos 500 mil postos de trabalho doméstico foram fechados.
A dinâmica não é nova: lembra o tempo em que o Brasil era
uma colônia portuguesa. A diferença é que, após a abolição, quem cozinhava,
limpava e cuidava da casa de alguém passou da condição de escravizado a de
empregado. Uma rede complexa de relações sociais mantém essa realidade quase
inalterada no país, em que privilégios e racismo desempenham papel fundamental.
LUXO BARATO
Avanços e retrocessos no trabalho doméstico espelham o
quanto o país progride ou regride. "A sociedade brasileira é muito
dependente das domésticas. Tem gente que nunca lavou um banheiro. É costume,
virou praticamente um artigo de luxo barato", diz Preta
Rara, 35, rapper, historiadora e autora de "Eu, empregada
doméstica", derivado de uma página do Facebook. Lançado em agosto de 2020,
seu livro reúne depoimentos de domésticas. "Ter uma doméstica em casa é
algo que você ostenta, e não se paga o valor correto [pelo serviço]. As pessoas
têm orgulho de falar que têm empregada."
Milhões de faxineiras, babás, cozinheiras e passadeiras, que
garantem o bem-estar das "casas de família", são tratadas como
"quase" da família. A herança escravocrata é sensível: escravizados
que trabalhavam na casa-grande vivenciavam algumas regalias que escravizados
das lavouras não tinham. "Virava uma relação amigável, mas eles eram
escravos e iam para o tronco, da mesma forma", diz Preta Rara.
"Em nossa sociedade patriarcal, mulheres são associadas
ao trabalho de cuidado, seja da casa ou de pessoas, como se fosse uma
habilidade natural", afirma Luana Simões, socióloga e pesquisadora do Ipea
(Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada). Não por acaso, os 8% dos
trabalhadores domésticos homens são motoristas, jardineiros e caseiros.
"Essa associação entre ser mulher e saber cuidar está na raiz do trabalho
doméstico e na forma como ele se constitui no Brasil."
Foi a figura da empregada doméstica que possibilitou às
mulheres brancas de classe média se lançarem no mercado de trabalho no século
20, explica Simões. "As brancas de classes média e alta só puderam
trabalhar quando resolveram privadamente o problema da falta de creches,
contratando também alguém para o trabalho doméstico, enquanto as de classes
mais baixas contam com uma rede de apoio, uma vizinha, uma filha mais velha
[para cuidar dos filhos]."
Domésticas cozinham, limpam e cuidam das crianças dos
patrões (e às vezes, de seus idosos) em troca de um salário mínimo ou de apenas
moradia e alimentação,
o que é crime. "É uma escravidão disfarçada", diz Preta. A relação é
desigual, porque muitas famílias não sabem onde a trabalhadora mora, se tem
família, qual a sua trajetória e história de vida. A doméstica participa do dia
a dia e, por proximidade, cria-se um vínculo de amizade e não uma relação de
trabalho. Existe afeto verdadeiro entre as pessoas, mas as fronteiras são
borradas. "A gente acha que tem uma dívida de gratidão com os
empregadores, e entende aquele trabalho como um favor."
QUARTINHO DE EMPREGADA
O Brasil anda exportando seu jeitinho pelo mundo.
Construtoras em Portugal foram obrigadas a rever projetos residenciais
para incluir
dependências de empregada. "O quartinho é o calabouço do
palácio", diz Silvana Justino, 56, costureira e ex-empregada doméstica.
"Você entra lá e é vigiada em tudo: quanto tempo fica no chuveiro, no
banheiro. Você não tem o direito de descansar. O quartinho é onde você chora a
noite inteira. É horrível", relata.
Filha de empregada doméstica, a cineasta Karoline Maia traça
um paralelo entre o quartinho e as senzalas em seu documentário "Aqui
não entra luz", em fase de finalização. Maia viajou pelo Brasil para
registrar construções coloniais que abrigavam pequenos cômodos para
escravizados domésticos e os compara aos apartamentos modernos.
"Senzalas domésticas também existiam, próximas às casas
grandes ou embaixo delas, e quartos pequenos entre os quartos dos senhores e
senhoras", conta ao TAB. "O quartinho é essa reprodução
da ideia de ter alguém 24 horas disponível para você, vivendo dentro da sua
casa, mas que dorme em condições menos favorecidas. É um grande símbolo dessa
herança", afirma.
O aspecto hereditário permanece ainda hoje. Muitas famílias
empregam meninas ainda muito jovens, filhas de empregadas domésticas, para
continuar a servir à família. "Comecei a trabalhar aos 12 anos para ajudar
minha mãe, que foi mãe solo. Ela se acidentou, era diarista. Dos 12 até o final
da minha adolescência, eu tinha dupla jornada: ia da escola para a faxina. A
maior necessidade era botar comida na mesa", conta Triscila
Oliveira, 35, ciberativista e co-autora, com Leandro
Assis, das tirinhas "Os Santos" e "Confinada", que
abordam as relações de trabalho no ambiente doméstico. "Sou filha de
faxineira, sobrinha de faxineira. Tenho uma prima que é faxineira e não parou
de trabalhar na pandemia."
Silvana Justino, que começou a trabalhar aos 9 anos, diz que
não deseja isso "nem para um filho meu nem para uma filha. Lembro bem o
que eu passei. É um trabalho digno e honesto, mas você não é vista assim, é
vista como um objeto. Não tenho boas recordações."
A LUTA POR DIREITOS
A conquista de direitos das trabalhadoras domésticas é
recente. Em 2020, a última lei que regulamenta a função, a Lei Complementar 150, completa apenas cinco anos. "Não
é a igualdade com que a gente sempre sonhou", diz Luiza Batista, 64,
presidente da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas).
"Mesmo com muita luta, o desrespeito ainda é grande. Nunca atingimos 40%
do total de trabalhadoras com carteira assinada. Isso é a não-aceitação de que
a doméstica também é uma trabalhadora."
Domésticas se organizam coletivamente em associações e
sindicatos desde os anos 1930. "Ainda hoje é uma classe 'diferenciada',
que não tem todas as garantias", afirma Nathalie Rosário, advogada do
Sindoméstica (Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São
Paulo). "Ainda percebemos resistência do poder público em regulamentá-lo,
e enfrentamos um retrocesso social de direitos. Sempre sobra para o trabalhador."
Em sociedades menos desiguais, explica Luana Simões, um
assalariado não pagaria o salário de outra pessoa. "O trabalho doméstico é
uma intersecção dessas três dimensões, raça, cor e gênero. A figura da
empregada doméstica é uma síntese das desigualdades que a gente continua
vivendo no Brasil."
Ao longo do tempo, segundo a socióloga, há uma tendência de
redução do trabalho doméstico remunerado diretamente proporcional à elevação do
acesso à educação. Em 1995, 17% das mulheres ocupadas estavam no trabalho
doméstico. Em 2018, a proporção caiu para 14,6%, segundo dados do Ipea. "As filhas das empregadas
domésticas conseguiram encontrar outros empregos, não necessariamente menos
precarizados, como no comércio ou no telemarketing", afirma.
"Qualquer um pode fazer [o trabalho doméstico], mas
você faria? Ficaria bom? Isso acontece sempre quando alguém procura um
pedreiro, uma faxineira. Tem que ser de confiança e alguém que não cobre caro,
o que dá a entender que não somos pessoas confiáveis e que somos inferiores.
Parece que alguém que não tem estudo não precisa ser valorizado por alguém que
não limpa o próprio banheiro", afirma Verônica Oliveira, 39, produtora de
conteúdo da página Faxina Boa nas redes sociais.
A desvalorização do trabalho empurrou muita gente para a
informalidade. Uma publicação que oferecia
faxinas por um prato de comida, em 2020, e outra que cobrava R$ 19,90 para uma arrumação de 1h30, de outubro de 2019,
viralizaram nas redes sociais e geraram muita indignação entre as trabalhadoras
domésticas. "É muito constrangedor ter acesso a esse tipo de
anúncio", diz Preta Rara. "Recebo relatos de trabalhadoras dizendo
que conseguem muitas faxinas pelos aplicativos, mas num valor bem menor do que
o que elas cobrariam se trabalhassem por conta própria."
HISTÓRICO DA CONQUISTA DE DIREITOS
1936 Laudelina de Campos Melo funda a Associação
Profissional dos Empregados Domésticos de Santos, 1º sindicato da categoria no
Brasil
1943 Criação da CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho), que exclui trabalhadores domésticos dos direitos
1960 Juventude Operária Católica realiza 1º Encontro
Nacional da Jovens Empregadas Domésticas, no Rio
1968 1° Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas,
em São Paulo
1972 Aprovação da Lei 5.859, que reconheceu o
trabalho doméstico como função e estabeleceu a assinatura da carteira de
trabalho, mas com direitos restritos
1973 Novo decreto garante férias a trabalhadores
domésticos
1985 Criação de um Conselho Nacional para reunir
sindicatos e associações de trabalhadores domésticos
1987 Decreto 95.247 inclui trabalhadores domésticos
como beneficiários de vale-transporte
1999 Medida provisória permite estender o FGTS aos
empregados domésticos
2006 Lei 11.324 estende às domésticas direitos de
descanso remunerado em feriados, férias de 30 dias e garantia de emprego às
gestantes até cinco meses após o parto
2010 Deputado Carlos Bezerra apresenta a proposta da
PEC 478 no plenário, que ficou conhecida como PEC das Domésticas, e estende
todos os direitos da CLT às trabalhadoras do ramo
2011 Brasil ratifica a Convenção Internacional do
Trabalho 189, que estabelece recomendações de garantia de direitos para
trabalhadoras domésticas
2013 Aprovação da PEC das Domésticas
2015 Aprovação da Lei Complementar 150, que
complementa a PEC
A VIDA LÁ FORA
Em países onde a desigualdade é menos gritante, o trabalho
doméstico remunerado funciona de forma diferente. Uma forma de comparar esse
tipo de relação é por meio da produção audiovisual. "As relações da vida
real servem de inspiração na construção de personagens", afirma Rachel
Randall, professora de mídia hispânica e comunicação digital da Universidade de
Bristol, no Reino Unido.
Há muitos paralelos em filmes contemporâneos pela América
Latina, diz Randall. "Roma", vencedor do Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2019, retrata a rotina de uma empregada doméstica no México ao
longo de décadas. Mas as relações são diferentes na Europa e nos Estados
Unidos.
"O que a gente tem visto por lá são mulheres filipinas,
latino-americanas, de baixa renda e de países mais pobres, trabalhando como
cuidadoras, babás, normalmente em trabalhos mais relacionados ao cuidado de
pessoas do que da casa. Onde não há licença- maternidade, o trabalho de babá é
muito relevante, como nos EUA", diz Simões. "Chamam isso de migração
de afeto."
O conceito é esmiuçado no livro "Migration, Domestic
Work and Affect: a decolonial approach on value and the feminization of
labor" (Migração, trabalho doméstico e afeto: uma abordagem decolonial
sobre o valor e feminização do trabalho, em tradução livre), da socióloga
Encarnación Gutiérrez-Rodríguez. A autora classifica o trabalho doméstico como
um trabalho de afeto e uma das principais vias de oportunidade para as
imigrantes.
"São mulheres que largam suas famílias em países mais
pobres, seja na América Latina ou nas Filipinas, como é comum nos EUA, e migram
para países ricos para trabalhar", diz Simões. "A diferença em
relação ao Brasil é que se trata de um fluxo internacional. Aqui, ele acontece
entre as regiões brasileiras, o que demonstra que lá fora as desigualdades
sociais internas são menos significativas."
Em ambos, mais uma vez, o afeto está presente. "Se a
gente conseguir resolver as desigualdades, é possível que a gente construa
outras relações, porque são construções sociais e podem ser desconstruídas.
Existem estratégias sociais e políticas para isso."
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