Um estupro a cada oito minutos. É assim que o anuário
divulgado esta semana pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresenta os
números da violência sexual no país em 2019, quando foram registrados 66.123
boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável. Em 2015 era um
estupro a cada 11 minutos – o que evidencia o agravamento do
problema.
Para que o leitor compreenda o que esses números
representam, basta pensar na metáfora da “ponta do iceberg”. O grande bloco de
gelo que flutua no oceano em geral tem apenas 10% de sua formação visível na
superfície. A maior parte da massa de gelo fica submersa, invisível aos olhos
de quem vê. Com os estupros também é assim. Estima-se que apenas 10% dos casos
cheguem até as autoridades policiais, sendo um dos crimes com maior índice de
subnotificação. Medo de retaliação por parte do agressor – geralmente um
conhecido -, vergonha do julgamento a que será exposta após a denúncia e
descrédito nas instituições de justiça e segurança pública são alguns dos motivos
que inibem a busca por justiça.
O caso recente da menina capixaba de 10 anos, grávida do
próprio tio após anos de abuso sexual e que percorreu
uma via crucis para ter seu direito ao aborto legal garantido,
ilustra bem o perfil das vítimas de estupro no ano passado. A maior parte
delas, 57,9% para ser mais precisa, tinha no máximo 13 anos quando do registro
do crime. O percentual representa um crescimento de 8% na proporção de crianças
e adolescentes vítimas de estupro de vulnerável em relação aos dados da edição
anterior, quando esse grupo representava 53,6% das vítimas. Isso significa que
mais de 38 mil crianças de até 13 anos vivenciaram abuso sexual só no ano
passado.
As vítimas começam a ser estupradas na infância, quando
muitas vezes nem compreendem o significado da violência sofrida. Os dados
publicados pelo Anuário indicam que 11,2% das vítimas de estupro tinham entre 0
e 4 anos, e 18,7% entre 5 e 9 anos. Raramente esses casos chegam ao
conhecimento da polícia após o primeiro episódio. O problema só vira caso de
polícia quando a mãe, ou muitas vezes a professora, percebe as mudanças de
comportamento da criança, que fica apática, tem queda do rendimento escolar e
problemas para dormir. Reunir provas, no entanto, é muito difícil. O agressor é
conhecido da vítima em 84,1% dos casos, por vezes o próprio pai ou padrasto,
tios, primos, vizinhos que dificilmente deixam rastros como material genético
que os identifique. Invariavelmente o que se tem é a palavra da criança versus
a palavra do adulto agressor, que nega veementemente.
Mas não é apenas a palavra das vítimas crianças que é
contestada após episódios de violência sexual. Mulheres adultas vivenciam o
mesmo. Em geral são questionadas por seu próprio comportamento, como se o fato
de estarem alcoolizadas ou usando um decote justificasse a violência que
sofreram.
Na última semana, vieram à tona as transcrições de
interceptações telefônicas feitas com autorização da justiça italiana e que
serviram como provas para que o Tribunal de Milão condenasse o jogador de
futebol Robinho a nove anos de prisão pelo crime de estupro coletivo. A vítima,
uma jovem albanesa de 23 anos, foi estuprada por seis brasileiros em uma boate
de Milão.
Nos diálogos divulgados pela imprensa, Robinho comenta com
um amigo, que teria presenciado o caso: “Estou rindo porque não estou nem aí, a
mulher estava completamente bêbada”, negando ter tido relações sexuais com a
jovem. O amigo então o questiona: “Eu te vi quando colocava o pênis dentro da
boca dela”, ao que ele responde: “Isso não significa transar.”
Não é apenas na Itália que isso configura estupro, Robinho,
no Brasil também. Desde 2009, o Código Penal define estupro como o ato de
“constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal
ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. É
ainda um estupro de vulnerável, dado que a vítima não tinha “o necessário
discernimento para a prática do ato”, como você mesmo reconheceu.
Provavelmente o dado mais chocante dentre os divulgados pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública é o que indica que 70% dos casos de
violência sexual no ano passado foram estupros de vulneráveis. Pessoas
incapazes de consentir ou de oferecer resistência ao ato.
Mesmo sendo um criminoso condenado em primeira instância, um
clube de elite do futebol brasileiro não viu problemas na contratação de
Robinho como estrela do elenco. Foi apenas após a pressão dos patrocinadores,
que condicionaram a manutenção dos patrocínios à rescisão do contrato do
jogador, que Robinho e o Santos vieram a público anunciar a suspensão de sua
contratação.
Estupro não é sobre um desejo sexual incontrolável do homem,
incapaz de se conter porque seduzido por uma criança de shorts ou por uma
mulher embriagada. Estupro é sobre violência sexual, sobre dominação, sobre uma
manifestação abusiva de poder, que acredita que o homem tem o direito de
subjugar uma mulher a seu bel prazer. Quem estupra, estupra porque acha que
pode; porque se sente com esse poder; e porque as mais absurdas justificativas
são aceitas socialmente para justificar o injustificável. Estupradores não são
monstros e raramente são pedófilos. Em geral são homens comuns, muitas vezes
nossos amigos e parentes. Por vezes até nossos tios ou ídolos do esporte.
Socióloga, é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo
pela FGV.
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