Não basta haver eleições livres e genuínas num país; também
é preciso que os eleitores votem bem. Porque às vezes eles se equivocam. Os
eleitores norte-americanos se equivocaram de maneira garrafal há quatro anos
votando em Donald Trump. Quem diz isto não é um “socialista furioso”
―como o presidente dos Estados Unidos geralmente acusa todos os seus
adversários―, mas alguém que se sente mais próximo dos republicanos que dos
democratas, sobretudo em política econômica, e que considera Ronald
Reagan um dos melhores mandatários da história norte-americana.
Empresário bilionário, mas sem a menor preparação política
nem cultural, Donald Trump, como informou o The New York Times, pagou impostos em apenas sete dos últimos 18 anos e
gastou cerca de 70.000 dólares [404.000 reais] em cabeleireiro. Sua
filha mimada, Ivanka Trump, embora seja funcionária da Organização Trump,
recebia estupendos “honorários de consultoria”. O senador McCain, republicano e
herói nacional, que sempre foi anti-Trump, teria morrido de novo se soubesse de
tudo isso.
Desde sua chegada à Casa
Branca, o presidente começou a despedir colaboradores, a tal ponto que
jamais existiu na história dos EUA um mandatário que tenha mudado a equipe
tantas vezes. Muito mais grave, no entanto, foi ele ter insultado os
tradicionais aliados de seu próprio país, que fizeram a Segunda Guerra Mundial com os EUA, pressionando-os
para que “aumentem seus gastos de defesa” com o argumento de que a OTAN não
podia viver apenas da contribuição norte-americana. Ao mesmo tempo, declarou
que o chefe de Estado que mais admirava era Vladimir
Putin. Tudo isso abalou as relações dos EUA com a Europa Ocidental de uma
forma sem precedentes. Washington certamente já não dirige a política
internacional do Ocidente. Ninguém a dirige, o que explica sua atual situação.
Talvez ainda pior tenha sido a dureza de seus ataques às migrações para os EUA, um país cuja grandeza foi
forjada principalmente pelos imigrantes vindos do mundo inteiro. Muitos, claro,
da América Latina e especialmente do México. Na memória de quase todo o planeta
permanecem as palavras do presidente Trump sobre os mexicanos: “Não nos enviam
suas melhores pessoas, e sim ladrões, traficantes, bandidos e estupradores.” E
sua obsessão por construir um muro eletrificado na
fronteira entre os dois países, pelo qual os próprios mexicanos deveriam pagar,
uma irrealidade sobre a qual ainda insiste, apesar dos argumentos ―incluindo os
de alguns republicanos, além de democratas― de que o custo seria estratosférico
e que não é realista sequer concebê-lo.
Os ataques aos migrantes mexicanos e do resto do mundo são
apenas um aspecto de sua campanha
racista, que inflamou as tensões entre brancos, negros e mestiços de todas
as partes nos EUA, onde fazia muitos anos que não apareciam cartazes como
“Somos um país de brancos”, difundidos pela velha Ku
Klux Klan, que reapareceram e violentaram, com mortos e feridos, os
conflitos raciais e sociais nos EUA de uma forma extrema que dificilmente
poderia ser imaginada.
Por isso, o país que deveria guiar o mundo livre está neste
momento mais isolado e solitário que em toda a sua história. Ninguém
o apoia em suas disputas com a China. Ao contrário, recebeu críticas
gravíssimas pelo projeto de paz com os palestinos, encomendado ao genro de
Trump pelo próprio presidente, e que não apenas foi considerado inaceitável
pelos próprios palestinos como também rejeitado por boa parte das organizações
mundiais, como as Nações Unidas, e por numerosas democracias do mundo.
Embora incentive em seus discursos a oposição na Venezuela ―a
pior ditadura latino-americana é a chavista, juntamente com a cubana―, Trump o
faz por puro oportunismo, pois na verdade não tomou nenhuma medida para dar
apoio efetivo a esse povo que luta contra um regime tirânico, que destruiu a
economia de um dos países potencialmente mais ricos do planeta e abriu as
fronteiras da América Latina aos iranianos, além dos russos, que agora compram
empresas por todo o continente graças à mediação de Caracas.
A atitude de Trump frente à praga do coronavírus não
poderia ter sido mais contraditória e nefasta. Os EUA têm mais de 250.000
mortos por obra da covid-19, é o país mais afetado pela pandemia e, no entanto,
seu presidente rechaçou como demagógicos e “esquerdistas” os chamados de alerta
dos médicos e especialistas para combater os contágios de maneira eficaz, por
meio de restrições, utilizando argumentos como o econômico. Isto é, a sociedade
não pode ser paralisada com o fechamento de empresas porque então haveria mais
mortos por falta de trabalho do que pela epidemia. O ideal: um cemitério.
Trump se orgulha de que, com sua política econômica, os EUA
gozam de uma grande prosperidade e pleno emprego. Em primeiro lugar, isto não é
correto. Em segundo, se a vida econômica do país foi menos atingida pelo avanço
da praga que a de outras nações desenvolvidas, é por sua notável agilidade, que
vem de longe, na qual os proprietários podem demitir os trabalhadores e estes
podem lhes exigir melhores salários ou ameaçar mudar de empresa se não o
conseguirem ―o que dá às suas indústrias uma notável capacidade de se renovar e
mudar de orientação, de acordo com a oferta e a demanda internacional. Isto vem
de longa data e, em grande medida, é responsável pelo vigor e pela fortaleza da
sociedade norte-americana. Com apoios governamentais, Trump ressuscitou
indústrias obsoletas, como a do carvão, e reduziu impostos e outras obrigações das grandes empresas,
o que parecia positivo. A certa altura, deu a impressão de fortalecer uma
economia que foi duramente atingida e pode vir a sofrer nos próximos anos uma
série de retrocessos devido aos efeitos do coronavírus.
É verdade que seu adversário nestas eleições, Joe
Biden, que foi vice-presidente de Obama, não é uma figura muito atrativa.
Carece de dinamismo. É bastante idoso e passa a impressão de um homem que
merece descansar após uma carreira política que, sem nunca se destacar, foi
sempre acertada e decorosa. Neste momento, contudo, Biden é a única pessoa que
pode tirar os EUA da dramática situação local e internacional, em que a
política grotesca e repleta de contradições delirantes de Trump levou o país a
viver uma das piores crises da sua história. Estando no poder ―e, sobretudo,
com o apoio que lhe oferecerá sua vice, Kamala
Harris, que tem uma excelente trajetória política e judicial na Califórnia
―, Biden devolverá à nação muitas das coisas que Trump virou pelo avesso, e que
outrora permitiram os grandes progressos dos EUA: a pujança de suas
instituições, o império da lei, a abertura de suas fronteiras, a inteligência
com a qual seus governos foram reduzindo velhos defeitos, como o racismo, e que
levaram o país aos grandes níveis nos quais ainda se encontra e que, apesar das
péssimas políticas de Trump nesses quatro anos, ainda mantêm os EUA no pelotão
de vanguarda dos países do mundo.
Tomara que Joe Biden triunfe nestas eleições e salve os EUA
da catástrofe que foi, há quatro anos, a decisão dos eleitores norte-americanos
de dar a vitória a Donald Trump.
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