sexta-feira, 6 de novembro de 2020

VOTO NÃO É HERANÇA

Joaquim Falcão, Folha de S.Paulo

Doutor em educação pela Universidade de Genebra, mestre em direito pela Universidade Harvard, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da Escola de Direito do Rio da FGV

O episódio do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), pego com dinheiro escondido na cueca, provocou a indignação moral de todos. Vivemos, indica o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, a sociedade da indignação. O que a provoca é a transparência digitalizada e visível.

Quanto mais transparentes os fatos, mais ativas as mídias sociais. O que necessariamente não assegura aperfeiçoamento institucional. Apenas a eventualíssima punição do culpado. Na maioria das vezes, leva apenas à conformidade indignada. Transparência, indignação e inação são ingredientes da atual crise política. Aqui e no mundo.

Acresça ao episódio que o filho do senador é seu suplente. Sai um, entra outro. É assim que deve funcionar um sistema eleitoral que se acredita e quer ser democrático? Transfere-se votos para o filho?

O filho não seria eleito se o pai não tivesse sido. Voto não é herança. Isso é monarquia eleitoral.
Nepotismo, quando a relação de parentesco favorece a ocupação de cargo público, é uma das portas giratórias, ou “revolving doors”, que, como dizem os americanos, é instrumento de nosso patrimonialismo. Fruto da aliança entre autoridades oficiais, burocracia e setores privados de nossa elite política e econômica.

Essa aliança tem se expandido pelos escaninhos da administração pública. Está presente nos três Poderes, onde a escolha não é por mérito e concurso. Mas por indicação e relação. Brasília tem se transformado em uma grande família. Onde muitas autoridades são parentes. Interconexões. É a maior das parcerias público-privadas que se tem notícia.

Se é para fazer reforma administrativa, o desafio não é apenas reduzir quantitativamente o número de funcionários e o orçamento público. Ou privatizar. Transferir áreas de exploração econômica para o setor privado em nome de mítica maior eficiência gerencial.

Mítica eficiência empresarial brasileira, porque dificilmente passa no teste da competição global. Com devidas exceções, naturalmente. Nem se concretiza sem benefícios, subsídios, proteções, isenções do Estado.

A crise da pandemia deixou o cotidiano da nação mais visível. Inexiste nação sem forte e eficiente administração pública. Neste momento, o setor privado espera investir e concorre com os necessitados pelo aumento do déficit público. Bem desabafou o ministro Paulo Guedes.

Nestas eleições municipais, vamos ver o patrimonialismo via nepotismo em pleno vapor. Esposas e filhos de candidatos ficha suja vão se autossubstituir. Pais, irmãos, filhos de senadores, deputados federais e estaduais em mandato lançando familiares a vereador.

Veremos ao vivo dinastias eleitorais em formação. Ou reprodução. A privatização do Estado parece passar pela privatização da política.

Mesmo assim, aqui e acolá, o Brasil tem avançado contra o nepotismo. A Constituição proíbe eleição de parentes de presidente da República, governador e prefeito. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu parentes de juízes em cargos de confiança e gabinetes. O Supremo ampliou essa proibição para toda a administração pública direta. Faltou a indireta. Como falta evitar nepotismo no Legislativo.

Nepotismo é uma cultura administrativa liquefeita. Expande-se em silêncio. Ocupa vazios e sutilezas legais. Nesta eleição, em Londrina, no Paraná, o candidato a prefeito Boca Aberta, do PROS, tem como vice seu próprio filho, Boca Aberta Jr., do mesmo partido. Isso não é República. É monarquia patrimonialista!

Inexiste o mínimo. Candidatos não são obrigados a declarar parentescos. Inexiste banco de dados eleitorais específicos para orientar os eleitores. Talvez fosse boa iniciativa para o ministro Luís Roberto Barroso, do Tribunal Superior Eleitoral, tornar essa informação obrigatória, pública e acessível.
E o país menos indignado.

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