As eleições no Congresso nos remetem a uma situação relativamente familiar: o mecanismo do “toma lá da cá”, que muitos supunham estar esgotado na política, voltou ao centro da cena. E desta vez com poucos esforços para disfarçar. O governo destinou mais de R$ 3 bilhões de verbas aos parlamentares e Bolsonaro confessou que iria influenciar a escolha num Poder que deveria ser independente.
Para quem vive há muitos anos o processo político brasileiro, é como se um ciclo se encerrasse. As relações fisiológicas degradam a política nacional e criam condições para que surja alguém prometendo tudo mudar e trazer consigo uma “nova forma de fazer política”.
Ao cair de cabeça no velho fisiologismo, Bolsonaro não somente reconstrói uma cena política que estamos cansados de ver. Há diferenças agora. Como ele e outras figuras, como Wilson Witzel, eram os arautos de uma “nova política”, é possível esperar que a própria ideia de novidade radical entre em decadência, o que, aliás, de certa forma já foi revelado em algumas cidades nas eleições de 2020.
Um dos subprodutos da vitória de Bolsonaro no Congresso foi desmantelar o centro. Em política, talvez isso não signifique um mundo que desmorona, como no verso de Yeats – “the center will not hold”. Significa apenas que aumentam as possibilidades de polarização.
Afinal, o centro, que foi implodido por Bolsonaro, acabaria se rompendo de qualquer forma. Não há consistência nesses partidos e, estrategicamente, o melhor seria um racha, com o lado da oposição democrática tentando se viabilizar na própria sociedade.
Quando Bolsonaro se elegeu, as barreiras de contenção de suas tendências autoritárias seriam o Congresso e o STF. Agora seu candidato obteve 302 votos, seis a menos que o necessário para aprovar uma emenda constitucional. Por essa e muitas razões, a democracia brasileira ficou mais vulnerável. Dificilmente serão considerados os crimes de responsabilidade que se sucedem na condução da pandemia. O negacionismo de Bolsonaro tem agora uma base parlamentar.
Aliás, uma demonstração disso foi a festa para 300 pessoas na comemoração da vitória de Arthur Lira, em Brasília. Horas depois de dizer em discurso que era preciso vacinar, vacinar, vacinar, o novo presidente comemorava com grande número de pessoas sem máscara.
Isso não é um detalhe. A posição negacionista se estende também ao combate ao uso de máscaras, consideradas por alguns “mordaças ideológicas”. É algo tão característico de escolhas políticas que nos Estados Unidos Joe Biden decretou o uso obrigatório de máscara em propriedades federais.
É necessário concluir que a mudança no Congresso, apesar da retórica, pode fortalecer a política negacionista. Nesse caso, não se trata mais de ameaça à democracia, mas do avanço de uma política que mata.
É evidente, hoje, que dois tipos de contenção foram necessários. Um para evitar a ruptura democrática, que se tornou menos viável para Bolsonaro após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas continua sendo necessária a contenção da política que contribui para a morte de milhares de pessoas.
O STF avançou nisso, sobretudo no momento em que definiu a responsabilidade conjunta de União, Estados e municípios. Tentou avançar em alguns outros pontos, como a exigência de uma política de proteção às populações indígenas, e solicitou também um plano nacional de vacinação. Onde foi necessário investigar diretamente a responsabilidade pelas mortes de Manaus, determinou uma investigação policial.
Mas o Congresso, disperso, agiu pouco. Aqui e ali entrou com denúncias no Supremo, mas não considerou uma tarefa coletiva deter a política de Bolsonaro e oferecer uma alternativa que pudesse salvar vidas, e não exterminá-las.
O que será agora da ação do Congresso na pandemia, com o poder nas mãos de aliados de Bolsonaro? Uma das saídas é a oposição reconhecer suas dificuldades e tentar viver este novo momento com habilidade para unir e coragem para combater os erros do governo.
Neste momento em que o poder no Congresso se concentra nas mãos de aliados de Bolsonaro, um caminho é buscar o equilíbrio por meio do encontro com a sociedade. Há pelo menos três temas que podem fortalecer esse encontro: a luta contra a pandemia, um processo organizado de vacinação e uma renovada ajuda emergencial aos milhões que ainda precisam dela.
No caso da ajuda emergencial, pode até haver uma convergência com o governo, mas é possível deixar claro que a oposição pressionou. Da mesma forma, o governo pode se convencer a vacinar, sob intensa pressão. No tratamento da pandemia as diferenças são abissais, intransponíveis. O governo nega sua importância, investe em remédios ineficazes, subestima testes e deixa que se estraguem, não sequencia nem rastreia novas variantes. E quando são descobertas, como no caso de Manaus, não existe um esboço de plano nacional para conter seu impacto.
É preciso simultaneamente evitar o sacrifício produzido pelo negacionismo e coletar provas de sua ineficácia, para ser responsabilizado adiante. Se o Congresso o blindar, existe o Supremo, se o STF não o punir, há o Tribunal Internacional.
A perda de espaço num Congresso fisiológico é menos importante do que o encontro da política com o sofrimento humano. Basta olhar para fora.
Artigo publicado no Estadão em 05/02/2020
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