O que o governo anunciou ontem, nas vozes do ministro da Economia e do presidente da República, é uma singularíssima tese de legítima defesa prévia.“Vou errar, mas em legítima defesa”, é o que disseram. É uma novidade e tanto, made in Paulo Guedes. Uma defesa a priori do crime que ainda se vai cometer – e, pasmem -, em favor das vítimas.
O crime é o de vestir no figurino de auxílio social a bolsa de reeleição do presidente e do centrão para legitimar o fim do teto de gastos. Não por acaso, isso custa os mesmos R$ 30 bilhões das emendas do relator destinadas, de forma secreta, a afortunados parlamentares da base para alavancar a renovação de seus mandatos.
Trata-se de grosseira fraude justificar o valor extrateto como uma imposição social para erradicar o flagelo dos pobres que ficaram mais pobres com a pandemia. Houvesse essa preocupação, o governo não teria trocado a vacinação pela imunização de rebanho.
Paulo Guedes veio a público para transformar em vitória uma dupla derrota – o da concessão eleitoral feita à ala política do governo e a recusa de sua área técnica em avalizá-la, com a retirada soberana que o ministro atribuiu a uma rebeldia juvenil dos auxiliares.
Para isso, construiu uma narrativa, recurso que ele próprio durante sua exposição traduziu como um mecanismo para alterar a realidade. Por ela, justificou o sacrilégio fiscal como uma concessão da economia à emergência social.
A síntese, portanto, é a de que humanizou a gestão econômica em favor dos pobres e desassistidos. Seria virtuoso, se o socorro não coubesse no orçamento, subtraídos os bilhões priorizados para as campanhas do centrão e da reeleição do presidente da República.
Mas é criminoso porque na ponta do lápis o que estufou o já obeso orçamento foram gastos programados para as campanhas de 2022. A prova disso é que esses recursos já estão garantidos e o auxílio Brasil ficou para o fim, como o superado cheque sem fundos, em busca de cobertura.
A emergência de seu equacionamento é por ser fator indispensável para legitimar os gastos não emergenciais, ou seja, os destinados ao financiamento eleitoral. Fosse o inverso, o social já garantido e as emendas eleitorais descobertas, não seria possível furar o teto para financiar as campanhas.
É forçoso reconhecer ousadia e atrevimento nessa estratégia, pois se ela subestima os que acompanham a política e a economia profissionalmente, engana bem os necessitados, cujo foco é a sobrevivência. E o recado é para esses.
Há outra mensagem – na verdade, o motivo da entrevista coletiva -, para tentar acalmar os mercados interno e externo. Guedes reduziu o furo do teto a um ponto fora da curva, porém controlado e temporário. Fiquem seguros, que não estamos no fim do mundo, disse ao mercado atônito.
O problema é que investidores não apostam em discursos ou narrativas, mas em lucro com segurança. Portanto absorverão o recado como um dever protocolar de todo inadimplente com o credor. E tocarão seus negócios com geopolítica própria.
A realidade não muda porque o ministro encontrou sua desculpa para o distinto público. Em dado momento, traiu sua narrativa ao tratar com naturalidade o arrombamento do cofre: os políticos precisam, às vezes, de garantir seu voto, é claro.
Nada contra a política, mas se é verdade que ela testa os limites da economia, como sustentou em sua fala, o vice-versa é igualmente verdadeiro: a economia deve mostrar que o limite não é elástico. Conta é conta.
A lorota do ministro confirma a máxima de La Rochefoucauld da hipocrisia como a homenagem que o vício presta à virtude.
O falso pudor é cúmplice indispensável à farsa montada para modificar as aparências. Mas, no fundo, reconhece a virtude como valor moral, ao dela se utilizar como quem vende um produto falsificado. Precisa parecer honesto, não sendo.
É espantoso que o governo anuncie uma pedalada de forma solene, em público, sem sofrer qualquer constrangimento legal por parte dos foros adequados. Depois da naturalização das mortes por Covid evitáveis, fruto do atraso deliberado da vacinação, tudo o mais parece banalizado.
Faz sentido. Se o tratamento aos alcançados pelo vírus mortal foi o de rebanho, a insensibilidade sentou praça, como se dizia em priscas eras.
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