Na lenta gênese do nazismo, não faltaram alertas sobre a tragédia que se desenvolvia. Mas sua dimensão só ficou evidente após o julgamento dos crimes no Tribunal de Nuremberg e a descoberta dos campos de concentração, que traduziram o horror em imagens. Com a conclusão dos trabalhos da CPI da Covid, o Brasil está enfrentando seu momento Nuremberg. É hora de compreender a extensão da catástrofe perpetrada pelo presidente e por seus asseclas. E é o que a comissão está fazendo. Renan Calheiros deve entregar o relatório final nesta terça-feira, 19, e ele será votado no dia seguinte.
O senador confirmou à ISTOÉ: o documento vai apontar que Bolsonaro adotou práticas do regime nazista. Calheiros o chama de “mercador da morte”. Segundo ele, dois casos aterradores, em especial, remetem a experiências macabras do Terceiro Reich com seres humanos: o caso Prevent Senior e uma pesquisa com proxalutamida que teria levado 200 voluntários à morte no Amazonas.
A Prevent é acusada de obrigar médicos a prescrever remédios sem eficácia do kit-Covid, de ter conduzido um pseudoexperimento e de mudar certidões de óbitos (omitindo os causados pela doença). No caso da proxalutamida, droga defendida por Bolsonaro e estudada para tumores de mama e próstata, os responsáveis haviam recebido autorização para uma pesquisa com 294 voluntários em Brasília. Mas ela foi aplicada no Amazonas em 645 pessoas. Além disso, o Conep (entidade responsável por regular a participação de voluntários em pesquisas) denunciou em setembro à Procuradoria-Geral da República que foram alteradas informações sobre o critério de inclusão de voluntários e pacientes falecidos. Apesar de os pesquisadores terem conhecimento dos sucessivos óbitos e eventos adversos graves, continuaram com o recrutamento e os estudos.
A Unesco considerou essa prática uma das infrações éticas mais graves da história da América Latina e pediu o monitoramento da comunidade científica nacional e internacional. “É inaceitável que esses tipos de eventos estejam acontecendo em 2021. Nenhuma emergência sanitária ou contexto político ou econômico justifica fatos como esses”, disse a organização em nota. Essas práticas não aconteceram à revelia das autoridades. O próprio presidente negligenciou as vacinas, propagandeou fármacos milagrosos, promoveu notícias falsas e sugeriu a invasão de hospitais. Tinha conhecimento da suspeita de corrupção na venda de imunizantes e nada fez. Por causa disso, Bolsonaro deve ser indiciado por 11 crimes. As denúncias incluem charlatanismo (três meses a um ano de prisão), publicidade enganosa (três meses a um ano de prisão), infração de medida sanitária (um mês a um ano de prisão) e corrupção passiva (dois a treze anos de prisão). Também entraram no rol de acusações: o genocídio e o crime de responsabilidade, passível de impeachment.
Homicídio doloso
Os delitos foram compilados pelo grupo de juristas coordenado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. No material que a CPI recebeu dos especialistas, eles não mencionaram o crime de homicídio. Em vez disso, imputaram ao chefe do Executivo o crime de epidemia, com resultado de morte. Isso, no entanto, não convenceu Renan Calheiros. Orientado por outros juristas, o relator está mais inclinado a denunciar Bolsonaro por homicídio doloso, baseado nos fortes indícios de omissão do governo no processo de compra de vacinas.
As investigações comprovaram um quadro de descalabro na administração da Saúde, com gabinetes paralelos, atravessadores inescrupulosos oferecendo vacinas que não existiam em contratos bilionários e personagens desqualificados dando orientações para lidar com a pandemia. Militares foram escalados por sua suposta expertise em logística, mas o despreparo para lidar com a emergência, além do voluntarismo para aderir a teses contra a saúde da população, ficaram patentes nos depoimentos.
Apesar de seu papel central, o mandatário não é o único responsável. A CPI deve indiciar mais de 40 pessoas por terem colaborado para tornar o Brasil o segundo País com o maior número de óbitos no planeta. Pelos menos seis ministros, titulares ou já demitidos, serão denunciados: Eduardo Pazuello (Saúde), Marcelo Queiroga (Saúde), Onyx Lorenzoni (Trabalho e Previdência), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Wagner Rosário (CGU) e Osmar Terra (Cidadania). Auxiliares próximos do presidente como Fábio Wajngarten (antigo chefe da Secom), Ricardo Barros (líder na Câmara) e empresários do círculo bolsonarista, como Luciano Hang e Carlos Wizard, também. E dois filhos também podem ser incluídos. Carlos Bolsonaro, pelo papel de articulador da rede de fake news e por ter difundido o kit-Covid, e Eduardo Bolsonaro por ser o elo dessa rede com supostos financiadores, como o empresário Otávio Fakhoury (outro provável indiciado) e o próprio Hang.
Há farta documentação para embasar todas essas acusações, e a CPI, uma das mais importantes desde a redemocratização, deve cumprir não apenas o papel de expor os erros na pandemia. Vai recalibrar a régua moral do País no momento em que as instituições estão sob ataque e há um desmanche em todas as áreas do Estado – o recente corte quase total das verbas para pesquisas científicas é apenas um sinal disso, justamente num segmento que poderia preparar a Nação para enfrentar emergências semelhantes.
Estratégia contra blindagem
Tamanho corpo de evidências não significa que os culpados serão de fato punidos. A comissão discutiu extensamente maneiras de evitar que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, engavetasse o relatório do colegiado. Aliado diligente na blindagem do mandatário, ele pode simplesmente se omitir diante do relatório. Formalmente, tem um mês para remeter a denúncia ao STF. Uma das propostas em discussão é fazer com que a defesa das próprias vítimas provoque diretamente a Corte por meio de uma ação penal privada, subsidiária da pública, inserida no âmbito do artigo 5º da Constituição. É o que defende o senador Alessandro Vieira, um dos nomes mais experientes do colegiado. Entidades de direito privado poderiam entrar com ações diretamente no STF. Essa alternativa já é debatida com membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que podem assumir a causa em nome de associações de vítimas da Covid. Mas trata-se de um expediente que pode ser questionado por juristas.
Os últimos dias foram consumidos pela CPI com os detalhes do relatório final. Vieira teme que questões levantadas pela comissão, como os atos médicos e a autonomia do paciente, possam enfraquecer o embasamento técnico da peça. Além da PGR, receberão o relatório o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público do Distrito Federal, além dos Ministérios Públicos Federais e Estaduais (para investigar pessoas sem foro privilegiado). A estratégia da cúpula da CPI é mobilizar esses órgãos “pela base”, fazendo com que seus membros pressionem Aras. O presidente da Câmara, Arthur Lira, receberá o documento porque nele estará listado o crime de responsabilidade cometido pelo mandatário (aqui, a blindagem é certa, pois Lira é outro aliado fiel do presidente). Para dar mais visibilidade às acusações, a CPI pretende ainda recorrer ao Tribunal Internacional Penal, em Haia, onde Bolsonaro já responde a três acusações. De qualquer forma, o acúmulo de provas já abasteceu processos em órgãos como TCU, PF e Anvisa.
Independentemente dessa nova fase que se inicia após a aprovação do relatório final, a CPI já ajudou de forma decisiva no julgamento histórico da gestão Bolsonaro. A crise na Saúde, agora agravada pela deterioração econômica, derreteu a popularidade de Bolsonaro. Ele tem dificuldades até em circular em público quando não está cercado de policiais e dos seguidores fanáticos. Foi barrado quando tentava assistir a uma partida do Santos na Vila Belmiro porque não tinha comprovante de vacinação. Aprendeu o que qualquer cidadão deveria saber: é preciso respeitar as leis. Na visita ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida (SP), no dia 12, enfrentou vaias de populares, que o chamaram de “lixo” e “genocida”. E levou um sermão do arcebispo, Dom Orlando Brandes, que defendeu momentos antes as vacinas e citou os 600 mil mortos de Covid. O religioso defendeu ainda em sua homilia uma pátria “sem corrupção e sem ódio”, e disse que “para ser pátria amada não pode ser pátria armada”. “Uma pátria é uma república sem mentira e fake news”, afirmou. Crítica mais direta, impossível.
O descrédito faz o presidente voltar a ser ridicularizado no exterior. A BBC Two produz em parceria com a PBS, rede pública americana, a série “The Bolsonaros”, que deve estrear em março de 2022 nos EUA e na Europa. O título remete às tradicionais famílias mafiosas retratadas nas telas. A TV France 5 também deve lançar no próximo ano um documentário sobre o brasileiro. A tragédia brasileira passa a ser encarada como drama ou comédia.
Código de Nuremberg
No âmbito da CPI, não é despropositado que Renan Calheiros compare os episódios da Prevent e da proxalutamida com as experiências desumanas de um dos próceres nazistas, o médico Joseph Mengele. Não se trata de excesso retórico. Quando os países aliados julgaram os principais seguidores de Hitler, foi desenvolvido o chamado Código de Nuremberg. Isso ocorreu após a Corte instalada nessa cidade alemã ter se debruçado sobre as experiências macabras com prisioneiros do regime, frequentemente com resultados fatais. Emergiram do debate os princípios que as pesquisas com seres humanos deveriam seguir. Antes de mais nada, elas deveriam proteger os voluntários, a quem foi dado o direito de opinar e tomar decisões. E haveria a responsabilização dos profissionais. Junto com outros códigos elaborados no pós-Guerra, essas normas constituem o pilar da ética moderna no assunto. Foi contra esse arcabouço civilizatório que Bolsonaro investiu, mobilizando autoridades, entidades médicas e profissionais.
O presidente agiu pelo marketing ideológico e pelo desespero de diminuir os danos políticos causados pela pandemia, além de tentar mobilizar as bases radicais que ainda o apoiam, movidas a fake news e polarização. Mas demonstrou princípios da ideologia nazista, como a perversidade e o desprezo à vida. Ele estimulou que vítimas da Covid fossem tratadas como cobaias e defendeu a eugenia, ao apontar que idosos (“velhos vão morrer de qualquer jeito”) e fracos (“sem histórico de atleta”) pudessem sucumbir. No início deste ano, pessoas morreram asfixiadas por falta de oxigênio enquanto uma comitiva oficial divulgava o kit-Covid. O mundo assistiu espantado a essa realidade. É duro admitir que tamanha infâmia tenha sido praticada em plena democracia e aos olhos de todos, mas ela aconteceu. Houve uma normalização dessas práticas.
Como o próprio Renan Calheiros aponta, a trajetória de Bolsonaro é autoexplicativa. Ele defendeu matar 30 mil brasileiros quando era deputado federal, idolatra “ditadores carniceiros” e tem vínculos com “a face mais assustadora da morte, as milícias”. Para o relator da CPI, o presidente é um facínora. Apenas expressa em palavras duras uma realidade cristalina. O presidente, por outro lado, permanece em negação, voltado para a própria bolha que ainda o idolatra. Mesmo diante da iminência da entrega do relatório, voltou a desacreditar a ciência. “Eu decidi não tomar a vacina. Estou vendo novos estudos, a minha imunização está lá em cima, para que vou tomar vacina? Seria a mesma coisa você jogar R$ 10 na loteria para ganhar R$ 2”, declarou. Ao propagar tamanha sandice usando a autoridade de presidente, demonstrou ignorância e irresponsabilidade e voltou a cometer um crime. Desestimulou novamente a vacinação, enquanto o SUS luta para acelerá-la nos estados em que a campanha está mais atrasada. Felizmente esse novo ataque acontece enquanto a sociedade reafirma sua confiança na Saúde. Mesmo com a sabotagem oficial, mais de 70% da população já tomou a primeira dose, e 100 milhões estão totalmente imunizados. A cerimônia de encerramento da CPI nos próximos dias deverá devolver o País à realidade. A sociedade ainda está enlutada, mas ajustando contras com sua própria história.
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