A pandemia expôs o contraste entre dois Brasis. De um lado, o Brasil que abraçou a ciência, obedeceu aos protocolos e aderiu massivamente à imunização; que se angustia com o desemprego, a inflação e a desigualdade; que sofre com a criminalidade e as agressões ao meio ambiente; e que, apesar de tudo, não esmorece e encara os problemas de frente. De outro, há um Brasil – minoritário, mas estridente – que promove soluções mágicas para desafios complexos; que terceiriza responsabilidades; que busca acumular privilégios a quem chama de “nós” e nega direitos a “eles”, os “inimigos da pátria”. Em raras ocasiões o contraste ficou tão explícito quanto no feriado dedicado à padroeira do País, Nossa Senhora Aparecida, no último dia 12.
No Santuário de Aparecida, o arcebispo dom Orlando Brandes iniciou sua homilia expandindo um abraço simbólico ao povo brasileiro, em especial às crianças, aos indígenas e às famílias enlutadas pela covid-19. “Para ser pátria amada, não pode ser pátria armada, para que seja uma pátria sem ódio, uma república sem mentiras e sem fake news.”
A alusão ao slogan do governo, “Pátria Amada Brasil”, é indisfarçável. A “pátria” do presidente Jair Bolsonaro é uma caricatura grotesca da pátria amada e consolada pelo arcebispo. “Pátria amada com fraternidade”, disse d. Orlando. “Todos irmãos, construindo a grande família brasileira. A família deve ser um lugar de audiência. A aliança é sinônimo de amizade. Uma amizade internacional significa parceria, diálogo mútuo, empatia, união e democracia.” Poucos dias antes, perguntado sobre as mais de 600 mil mortes por covid, Bolsonaro, a passeio pelo litoral paulista, retrucou: “Não vem me aborrecer aqui”.
Na conclusão de sua homilia, dom Orlando exortou: “Vacina, sim; ciência, sim”. Bolsonaro, por sua vez, criticou a exigência de comprovante de vacinação para ir a um jogo de futebol. “Por que não divulgam o número de mortes de pessoas vacinadas?”, resmungou o presidente, insinuando a ineficácia das vacinas. Para não deixar dúvidas, em entrevista a uma rádio, Bolsonaro disse que viu “novos estudos” e, “no tocante à vacina, decidi não tomar mais”.
Não se sabe quais são esses estudos. Se se preocupasse em ler aqueles divulgados em publicações científicas, Bolsonaro saberia que as pessoas não vacinadas têm pelo menos 11 vezes mais chances de morrer do que as vacinadas, e que a reversão das taxas de transmissão no Brasil aos índices de abril de 2020 são um indisputável resultado da campanha de imunização que ele tanto sabota.
Há poucos dias, Bolsonaro posou com uma criança fardada e armada. Mas “pátria amada não é transformar crianças inocentes em crianças fuzil”, lembrou d. Orlando. Como apontou um levantamento do Instituto Sou da Paz, Bolsonaro promoveu 31 alterações flexibilizando o porte de armas. A posse aumentou 67% e os homicídios, que estavam em queda, voltaram a crescer em 2020 quase 5% em relação a 2019. As maiores vítimas são jovens.
A pátria amada pelo arcebispo é aquela em que “nenhum brasileiro precise catar no lixo ossos para sobreviver”. Mas, segundo disse Bolsonaro à beira-mar, o Brasil foi um dos países que menos sofreram e que está se saindo melhor na retomada, uma impostura que contrasta com todos os indicadores econômicos, que mostram o desempenho do País muito pior na comparação com outros países em condições socioeconômicas similares.
Em Aparecida, em mais um episódio de sua ininterrupta campanha eleitoral, Bolsonaro promoveu mais aglomerações sem máscara. Se tivesse chegado em tempo à celebração ministrada por d. Orlando, teria ouvido que “só vamos vencer com a força do espírito; a nossa maior arma é a penitência, a oração, o pedir o perdão”. Mas para Bolsonaro não há nada a vencer nem motivos para pedir perdão. E mesmo que houvesse, ele deixou claro que não quer ser aborrecido. Aos brasileiros, mais do que aborrecidos, ameaçados pelo vírus, violência e miséria, resta empunhar a maior arma do bom combate democrático – o voto – e derrotar o Brasil de Bolsonaro nas urnas.
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