Se há uma coisa que o presidente Jair Bolsonaro gosta é de dar e receber distinções oficiais do Estado imerecidas e sem critérios técnicos ou avaliação de mérito. Há desde o início do governo um festival de honrarias disparatadas para parentes, amigos e aliados como dificilmente se viu no período democrático. Desde que começou a distribuí-las a torto e a direito, como a Ordem do Mérito Naval para o inapto ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ou a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco para o guru Olavo de Carvalho, deu para perceber que as nobres condecorações da República estavam entrando numa espiral de decadência e descrédito. O próprio Bolsonaro recebe premiações indevidas. A última foi a medalha de Grão Mestre da Ordem Nacional do Mérito Científico, que deveria recusar por vergonha. Embora como presidente tivesse direito à honraria, é um evidente despropósito, já que ele, com sua persistente atitude negacionista e suas tentativas constantes de atrapalhar o combate ao coronavírus, só achincalhou a ciência nos últimos tempos. Para completar, até agora, em quase três anos de governo, ele concedeu onze medalhas para seus familiares, três para o filho 01, o senador Flávio, cinco para o 03, o deputado Eduardo, e três para a mulher Michelle, sem que tenham feito algo notável. Foram todas arbitrárias e sem justificativa que não seja o vínculo familiar e o nepotismo.
Bolsonaro transformou o governo num balcão de medalhas de fazer inveja a ditadores do passado como Idi Amin Dada ou Jean-Bédel Bokassa. Depois da eleição, sua avidez medalhista se manifestou pela primeira vez em dezembro de 2018, um mês antes da posse, quando recebeu a condecoração do Pacificador com Palma. Trata-se de uma das mais prestigiadas honrarias oferecidas pelo Exército, criada em 1953, em homenagem ao sesquicentenário do nascimento de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Em 1962, ela foi adaptada, ganhou o detalhe da palma e passou a ser concedida também para civis. É destinada para aqueles que realizam atos de bravura e destemor em suas atividades em tempos de paz. Isso não combina com Bolsonaro, que deixou o Exército pela portas dos fundos quando se elegeu vereador, depois de fazer politicagem e ameaçar lançar bombas em quartéis para protestar contra os baixos salários das Forças Armadas. Mas num claro malabarismo, como raramente se viu na trajetória da condecoração, foi resgatada das sombras uma demonstração de bravura realizada por ele em 1978. Durante quatro décadas o processo ficou na gaveta para só sair quando Bolsonaro virou presidente.
11 medalhas É o total de regalos que a família Bolsonaro deu para si própria em quase três anos de governo
O ato heroico foi ter salvo do afogamento um soldado chamado Celso Luiz Morais, apelidado de “Negão Celso”, da 2ª Bateria de Obuses do 21º Grupo de Artilharia de Campanha, em uma lagoa, há 43 anos, durante uma instrução militar. Dois generais da reserva ouvidos por ISTOÉ que acompanharam a concessão da medalha dizem que os fatos que levaram à honraria são muito contraditórios e obscuros e ela só foi concedida num lance de oportunidade, com o objetivo de trazer algum ingrediente épico para uma carreira militar pífia. Em 2012, a condecoração foi reivindicada pela primeira vez por Bolsonaro, que montou sua narrativa, mas o pedido não foi aceito pelo Exército. Por se tratar de um militar negro, o presidente usa até hoje o caso como uma demonstração de que não seria um sujeito racista. O Pacificador com Palma é hoje o símbolo que mais dá orgulho a Bolsonaro. Sempre que quer dar algum recado ou parecer abnegado usa um pequeno broche azul e vermelho, que representa a medalha, na lapela esquerda de seu paletó. Uma das mensagens que passa quando coloca o adorno é de admiração pelo seu mentor, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, que também recebeu a condecoração. No começo dos anos 1970, vários notórios torturadores como Ustra, o major Freddie Perdigão Pereira, o capitão Ailton Guimarães Jorge e o delegado Sérgio Paranhos Fleury ganharam o regalo, uma pequena placa de bronze de 3 cm com o brasão do Duque de Caxias.
Enquanto é generoso consigo mesmo e com os seus, Bolsonaro mostra-se impiedoso com os desafetos. Quem não está plenamente alinhado com a ideologia de extrema-direita do governo não ganha medalha no Brasil. Quanto pior o desempenho do funcionário ou ministro ou mais profunda sua ignorância, maior a chance, hoje, de ele ser agraciado com um título de notória contribuição à Nação. Prova disso é que, na semana passada, Bolsonaro excluiu de maneira sumária da lista de agraciados com a Ordem Nacional do Mérito Científico os cientistas Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, ambos estudiosos prestigiados de doenças infecciosas na Amazônia, porque descobriu que não estavam de acordo com as políticas obscurantistas do governo federal de promoção à cloroquina e boicote às medidas de distanciamento e isolamento, como se fosse um defeito. Foi uma clara demonstração de parcialidade e rancor e mostra que Bolsonaro trata virtudes como defeitos na hora de escolher seus preferidos. Em protesto contra a exclusão arbitrária, outros 21 pesquisadores que seriam condecorados abriram mão da distinção. A revisão foi feita no Diário Oficial e restou conceder a Ordem do Mérito Científico para alguns ministros, como Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia, chamado, há uma semana, de burro pelo titular da pasta da Economia, Paulo Guedes, outro inexplicavelmente agraciado. Em carta pública enviada a Pontes, os 21 cientistas declararam “indignação e repúdio pela exclusão arbitrária dos colegas” e classificaram a decisão como “um novo passo do sistemático ataque à ciência por parte do governo vigente”.
Bolsonaro já deu onze medalhas para os membros de sua família desde que tomou posse. A mulher Michelle foi condecorada três vezes neste ano com a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz, a Medalha da Vitória e a Ordem do Mérito da Defesa. Já os filhos Flávio e Eduardo foram condecorados oito vezes desde o início do governo. Flávio recebeu a Ordem do Mérito Naval, a Ordem Nacional de Rio Branco e a Ordem do Mérito Aeronáutico. Eduardo recebeu essas três e mais a Ordem do Mérito da Defesa e a Ordem do Mérito da Advocacia Geral da União. Dos filhos políticos do presidente, apenas o 02, Carlos, ainda não embalou na farsa das condecorações. Mas tudo indica que logo ele também terá sua medalhinha. O próprio presidente, desde que assumiu, foi agraciado com pelo menos seis delas, a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Naval, a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Judiciário Militar, a Ordem do Mérito Aeronáutico, a Medalha do Mérito Mauá, o Grão Colar da Ordem do Mérito Judiciário Trabalhista e a Ordem do Mérito da Defesa. Todas as condecorações que ele deveria ter ganho na época de militar e não ganhou por inoperância, ele tenta recuperar agora na presidência.
A sanha medalhista de Bolsonaro e sua falta de critérios ficam ainda mais nítidas quando se vê os gastos crescentes do governo com condecorações. Em 2019, só no primeiro semestre, foram despendidos R$ 1,6 milhão para a compra do ornamento, mais do que em 2017 e 2018. No ano passado, a Marinha gastou outros R$ 1,1 milhão para confeccionar os nove tipos de condecorações que concede, o dobro das despesas registradas no ano anterior. Uma das principais medalhas da Marinha, a Ordem do Mérito Naval, vem sendo fartamente distribuída para ministros e aliados do governo. Além de Weintraub, Flávio Bolsonaro, Paulo Guedes, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e o deputado Osmar Terra já receberam a homenagem. Considerando o Ministério das Relações Exteriores, Defesa, Exército, Marinha, Aeronáutica e Escola Superior de Guerra (ESG), há cerca de 50 distinções oferecidas hoje pelo Estado brasileiro. Enquanto estiver no poder, Bolsonaro fará o que puder para dar todas para si próprio e para seus parentes e aliados negacionistas. Seu negócio é medalha.
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